textículos - edição especial festival do rio 2008

Ano Unha (Año Uña), de Jonás Cuarón (México, 2008)
por Fábio Andrade
Ano Unha é introduzido por uma cartela que diz que o filme nasce de um roteiro ficcional, escrito a partir de fotografias e personagens registrados de maneira documental. Que o espectador não se engane: não há, aqui, sinal ou intensão do trânsito no entre-gêneros de um La Jetée, de Chris Marker, mas sim uma clássica fotonovela, substituindo, apenas, as legendas das revistas por atores que falam e pensam em off. Nos primeiros vinte minutos, Jonás Cuarón (filho de Alfonso) faz esforço perceptível para inflar sua opção estilística com “substância”. O resultado é bastante desanimador: personagens extremamente tipificados, em jorros de consciências privadas onde toda palavra é escrita com traços que desenham um discurso. Mas quando o filme reduz sua ambição a uma estória boy meets girl¸ Ano Unha larga boa parte de seu peso pelo caminho, flutuando entre boas piadas e um feelgood que, até então, não parecia ter lugar entre aquele desfile de preconceitos. Aos poucos, o registro fotográfico parece responder menos à intenção de Molly (Eireann Harper, interpretando a menina que viaja apenas para tirar fotos), e encontra maior simpatia no desejo de Diego (Diego Cataño) quando diz: “Queria congelar esse momento e vivê-lo para sempre”. Suando o excesso de pretensão pelo caminho, Ano Unha aos poucos conquista momentos de sincero engajamento do público. O que, vistos os primeiros vinte minutos de filme, é muito mais do que qualquer espectador poderia esperar. 

A Boa Vida (La Buena Vida), de Andrés Wood
(Chile/Argentina/Espanha/França, 2008)
por Eduardo Valente
E lá vamos nós de novo: filme-coral, personagens que se cruzam pela cidade aleatoriamente (mas não muito porque "estamos todos conectados", né?), sempre sofrendo o máximo possível - talvez para que o espectador, do conforto de sua cadeira, possa se sentir mais afortunado e "dar valor ao que ele tem". Tudo a serviço de um sentimentalismo fácil, onde o cinema de ficção é pensado tão somente como mecanismo de exploração do sofrimento alheio (ainda que ficcional), para catarse do diretor e da platéia. Como cereja do bolo, a opção por nem dar à personagem pobre a possibilidade de existir na tela para mais nada que não seja objeto de humilhação dos outros; e ainda a cara de pau de propor um título "irônico". Conclusão: antes o cinema de um Ulrich Seidl, que propõe honesta e abertamente que o ser humano é sujo por natureza e que o espectador é um sádico voyeur, do que a mesma proposta disfarçada de humanismo exemplar.

Casa Negra (Geomeun jip),
de Terra Shin (Coréia do Sul, 2007)

por Fábio Andrade
Primeira grande produção dirigida por Terra Shin, Casa Negra filia-se à indústria de gênero conhecida como K-Horror – movimento sul-coreano pensado aos moldes do novo cinema de horror japonês. Passando longe tanto do teor político de Bong Joon-ho (O Hospedeiro), quanto do psicologismo gore de um Park Chan-wook, Casa Negra busca pares no Japão: a mise-en-scène de Terra Shin estaria em algum ponto morno entre o niilismo exuberante de Takashi Miike e a frieza clínica de Kyoshi Kurosawa (ambos com filmes presentes no Festival). “Morno”, porém, é palavra importante: para além de uma mínima eficiência narrativa, Casa Negra é marcado por uma visível confusão de registros. Oscila entre o horror e o humor, entre o estático e o pulsante, entre a sugestão e a revelação explícita, gerando uma pane formal que é mais fruto de uma notável insegurança do realizador, do que de um desejo mais ousado de retrabalhar as convenções do gênero. Embora cumpra com alguma dignidade suas intenções, Casa Negra ganha espaço no Festival mais como um representante aleatoriamente pinçado de um gênero pouco difundido por aqui, do que como uma experiência cinematográfica digna de particular atenção.

Cordeiro de Deus (Cordero de Diós),
de Lucía Cedrón (Argentina/França/Espanha, 2008)
por Eduardo Valente
Mais uma história de lembranças da ditadura militar em países latinos contada pelo viés da personagem infantil - algo que se mostra muito recorrente, é claro, principalmente por ser a vivência de uma certa geração que filma agora. Só que Cordeiro de Deus, ao contrário de vários outros, se passa no ontem e no hoje, interessado que está também na dimensão dos traumas da violência do período nas relações familiares - algo até interessante como conceito mas que Lucia Cedrón soluciona de maneira, para ser gentil, claudicante. Isso acontece porque tudo no filme existe para dar sustento a uma relação de pura informação: por um lado, o peso da "aula de História"; por outro, um desejo de manipular os dois tempos narrativos e as relações humanas de maneira a criar um certo suspense que nunca se manifesta de fato. Falta pulso, falta coração, falta cinema em suma. Cordeiro de Deus não se diferencia do que poderia ser uma reportagem de jornal ou um conto literário, porque tudo nele se basta como dado, e nunca como imagem que tenha vida própria. Um cinema engessado que faz da História no cinema o equivalente à mais maçante das aulas de colégio.

Easy Virtue, de Stephan Elliott (Inglaterra, 2008)
por Eduardo Valente
Desde o desenho dos créditos iniciais, Stephan Elliott deixa claro que, nessa volta ao cinema depois de nove anos afastado (inclusive por motivos de doença), ele quer muito se divertir. E esta é a principal virtude de Easy Virtue - uma, aliás, nem sempre tão fácil assim, com o perdão do trocadilho. Elliott se aproveita em parte do texto de um Noel Coward ferino (embora, a bem da verdade, em alguns momentos o texto seja um pouco witty demais da conta) e em parte de uma mise-en-scène de uma fluidez notável, entre elegantes movimentos de câmera e uma montagem de cortes rápidos, mas nada bobos. Fica claro que seu desejo é o de retomar uma certa tradição da comédia de costumes, não só no teatro como no cinema dos anos 30-40, e ele consegue reproduzir o que talvez seja o principal de alguns dos melhores filmes do período: a capacidade de transformar a diversão na realização em diversão na tela, que transborda então para o espectador. Por fim, não podemos deixar de falar de três escolhas sábias no elenco: Colin Firth dando muita dignidade ao seu personagem; Kristin Scott Thomas se divertindo como a megera inglesa; e, acima de tudo, uma Jessica Biel que, se não chega a ser brilhante como comediante, também não faz feio - ou melhor, faz o principal, que é ter uma presença de tela que dá total veracidade ao impacto de sua personagem no espaço onde se passa a trama.

Expresso Transiberiano (Transsiberian), de Brad Anderson (Inglaterra/Alemanha/Espanha/Lituânia, 2008)
por Paulo Santos Lima
Estamos diante de um thriller no qual um casal americano (Woody Harrelson e Emily Mortimer) entra numa enrascada ao conhecer um jovem casal no trem do título. Para crescer a tensão, o filme nos informará que a Rússia é um país de bárbaros, que o marido é um perfeito boçal ao passo que sua esposa é uma ex-pervertida tentando se regenerar mas se assanhando com os recém-amigos de viagem (o rapaz, no caso) e que eles estarão envolvidos com o tráfico de drogas no trajeto. O tal expresso, em si, não é nada além de um cenário para a encenação do drama – e estamos falando de uma das mais notórias linhas férreas do planeta. (bem questionável e esquisito, aliás). Se em O Operário o norte-americano Brad Anderson indicava ser um diretor querendo criar uma estética sua, notadamente pelo uso da figura do ator Christian Bale, esquálido e interagindo com a estilização espacial dos espaços industriais que criava um “neo-expressionismo”, com este O Expresso Transiberiano, o diretor simplesmente opta pela convenção total da indústria, deixando suas imagens sem assinatura e a serviço de um roteiro de causa-efeito bastante ultrapassado.

Involuntário (De Ofrivilliga), de Rubens Ostlund
(Suécia/França/Noruega, 2008)
por Eduardo Valente
Vez por outra acusamos um ou outro cineasta de usarem seus personagens ficcionais para tão somente ilustrar uma tese ou uma idéia sobre o mundo, esvaziando assim a ficção de qualquer potência independente frente o “mundo real”. Pois Involuntário impõe um problema maior, pois esta que pode ser uma conclusão na análise de algumas obras ficcionais aqui é de fato o objetivo assumido pelo filme desde bem cedo (como evidenciado numa cena que, de tão didática, se desenrola numa sala de aula infantil). De fato, aquilo que une as seis histórias que se revezam na tela, mais do que uma tese, trata-se mesmo de uma acusação ao ser humano: a de que, levado pelas “leis da convivência social”, ele se acovarda quando em grupo e é capaz dos atos mais vergonhosos justamente por não querer passar vergonha frente aos colegas. Para ilustrar a tese, como dissemos, seis histórias, cujas cenas vão sendo separadas por uma solene “tela negra”, e onde o papel do cineasta e do espectador é, sob a desculpa de “se colocar no lugar dos personagens”, tão somente observar quão baixo os seres em cena poderão descer. Logo fica claro que Rubens Ostlund é apenas mais um novo aluno na escola de Michael Haneke, sem possuir qualquer talento específico que o distinga ou cause interesse.

M - Vidas Duplas (M), de Ryuichi Hiroki (Japão, 2006)
por Eduardo Valente
Nos primeiros trinta minutos, M - Vidas Duplas surpreende ao mostrar de uma sociedade japonesa que, mesmo reprimida na sua relação com a sexualidade e as drogas, encontra uma forma de burlar as interdições. Trata-se de um começo onde emana uma forte sensualidade da tela (principalmente na história de uma esposa que nos lembra a Bela da Tarde de Buñuel), e onde o espectador é levado a se posicionar, inclusive no aspecto sensorial, sobre algumas imagens no limite do perturbador. No entanto, com o desenvolvimento da narrativa e o entrecruzamento entre suas duas histórias, o filme logo mostra a verdadeira cara: toda a sexualidade descamba para a violência, assim como a questão das drogas para a marginalidade, e o que no começo parecia provocação ao espectador logo se revela na verdade de um proofundo sadismo - com personagens e espectadores. O discurso se superpõe à forma, e o decadentismo, mesmo que propondo uma suposta "saída lúdica" ao final, não deixa dúvidas: mesmo na aparente liberalidade de suas imagens, M é parte do ambiente repressor.

Na Mira do Chefe (In Bruges),
de Martin McDonagh (Inglaterra/Bélgica, 2008)
por Paulo Santos Lima
Após um conturbado trabalho, dois assassinos profissionais britânicos são enviados para a histórica cidade medieval de Bruges, a fim de aguardar novas ordens do patrão. Ainda que elegantemente filmada por câmera classicamente sutil, em scope alimentando uma exuberância naquela arquitetura, Bruges não será uma questão ao longo do filme, exceto como ponte cômica para o personagem de Ray (Colin Farrell), que detesta história (“tudo já aconteceu”, diz) e acha aquele lugar um tremendo tédio. Esse humor, bastante herdeiro da tradição britânica anti-correção política, dá respiros formidáveis a este filme que, além da câmera cuidadosa, mantém um certo tom solene, sobretudo quando envereda pelo drama de Ray, que matou por engano uma criança na igreja. O resultado é um jogo interessante, de onde uma cena dramática é implodida por uma frase pescada do ótimo texto ou pelas atuações de Farrell, de Brendan Gleeson (que faz Ken, o parceiro) e de Ralph Fiennes (cuja aparição, a horas tantas, é a síntese desse jogo interessante de usar o inusitado para “sabotar” os momentos dramáticos). Assim, o choro é quebrado por uma noitada a pó, mulheres e álcool, ou uma terrível morte acaba resgatando (e confirmando) uma piada “politicamente incorreta”, de anão, feita anteriormente por Ray. É um cinema de ator, mas com elenco que se presta bem ao serviço da zombaria.

Ninho Vazio (El Nido Vacio), de Daniel Burman
(Argentina/Espanha/França/Itália, 2008)
por Eduardo Valente
Encontramos Leonardo num daqueles momentos delicados da vida: dramaturgo de sucesso, casado com a bela Martha, está chegando na idade em que sua filha mais velha se prepara para sair de casa. A partir da noite em que se dá conta disso (após um jantar em que se dá conta também de uma série de inadequações entre ele e a mulher - e principalmente os amigos desta), ele entra em uma espécie de parafuso mental (criativo, claro, afinal é um artista) que vai transformando sua vida num constante estado de desencanto e/ou desespero. Daniel Burman filma isso tudo com sua habitual mistura de elegância, diálogos inteligentes, grandes atores, câmera na mão (quase sempre excessivamente), tudo no lugar - um pouco no lugar demais, inclusive, e as cenas parecem tão somente servir para ilustrar os problemas de Leonardo de maneiras um tanto óbvias (ver, principalmente, as que se passam na terapia de casal, ou no caso extraconjugal que vive com sua dentista). Na verdade, mais do que isso, o problema principal de Ninho Vazio é que Leonardo é um personagem desagradável ao extremo no seu egocentrismo infantilizado (e há outro tipo?), e ao fazer um filme todo sob seu ponto de vista (em mais de um sentido, como confirmamos no final), Burman impõe-se um desafio nada pequeno: como causar a empatia do espectador pelo ponto de vista de um homem desagradável? Longe de propormos que o cinema só trate de personagens simpáticos, mas o fato é que o tamanho do desafio não é resolvido em mais este exemplar do cinema humanista-formulaico de Burman, que se sempre foi de altos e baixos, aqui vê os segundos acabarem sobressaindo-se aos primeiros (ainda que estes existam).

Noites de Tormenta (Nights in Rodanthe),
de George C. Wolfe (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
O caminho mais fácil para descartar de saída Noites de Tormenta seria acusar aquilo que, no fundo, ele não nega ser: um enorme emaranhado de clichês de filmes românticos com fins “curativos”, embrulhados por uma fotografia e direção de arte hiper-trabalhadas, com um par de atores (Richard Gere e Diane Lane) claramente em piloto automático, revisitando suas personas mais que estabelecidas, sem se preocupar em adicionar nada de novo. No entanto, existe algo de mais profundamente perturbador no filme do que sua aparência mais imediata deixa antever (ou do que a quase cópia de As Pontes de Madison que ele é). Muito mais do que sua opção pelo clichê, o que realmente incomoda é o fato de que toda a lógica de Noites de Tormenta vem da afirmação de que um momento único vivido e dividido entre duas pessoas pode movê-las internamente mais até do que suas vidas anteriores todas – no entanto, o que George C. Wolfe parece não se dar conta é de que como espectadores nós precisamos, cinematograficamente, acreditar na força deste momento. Ao encená-lo de maneira ao mesmo tempo tão óbvia e artificializada, Wolfe não cria um momento humano único e sim um momento cinematográfico já mais do que digerido e tornado lugar comum. E como podemos nós acreditar, então, que um tamanho lugar comum pode mudar a vida das pessoas? A resposta é: não podemos.

Paisito (idem), de Ana Díez
(Espanha/Argentina/Uruguai, 2008)
por Ronaldo Passarinho
O golpe militar de 1973 no Uruguai serve como pano de fundo para uma história de amor ou a história de amor serve como pretexto para uma dramatização do golpe militar? Essa dúvida não é apenas do espectador de Paisito, é da própria cineasta, que não soube optar por uma das duas abordagens e não descobriu uma terceira via em que as duas coexistissem à vontade. A narrativa transita, ou, mais apropriadamente, claudica, entre o reencontro de um jogador uruguaio de futebol, vendido para um time espanhol, com sua namorada de infância, no presente, e a história de amor entre os dois, no passado. No presente, concentra-se no casal. No passado, abandona as crianças a maior parte do tempo e se perde em diálogos intermináveis e sempre muito didáticos sobre a situação política da época. A narrativa mal-alinhavada tem sua contrapartida no estilo desleixado da direção: o filme é basicamente uma sucessão de campos e contracampos captados por câmeras fixas rodando simultaneamente, como num estúdio de TV. Sem outros méritos artísticos, Paisito poderia almejar ser uma história bem contada, mas nem isso consegue ser.

O Sal Desse Mar (Milh Hadha Al-Bahr), de Annemarie Jacir
(Palestina/França/Suiça/Bélgica/EUA/Inglaterra/Holanda/Espanha, 2008)
por Eduardo Valente
Em material de divulgação desta sua estréia em longas, Annemarie Jacir diz que "todo filme feito na Palestina é um pequeno milagre". A frase, muito mais do que mística, seria a constatação de um estado de coisas sócio-econômico-político que torna a simples existência na Palestina um feito e tanto, quanto mais a realização de um filme (que, de resto, para se concretizar, como podemos ver acima, conta com o dinheiro de um belo número de países dispostos a ajudar no "milagre"). Frente ao filme que se nos apresenta, temos assim duas posturas possíveis: a de maravilhamento frente à realização deste milagre (que, neste caso, quase prescindiria dos nossos olhos); ou a ida ao encontro dessas imagens, respeitando-as de forma igual a qualquer outro filme - o que não só nos parece a posição política mais adequada, como aquela que um palestino mais desejaria: ser tratado como qualquer outro. Optando por este segundo caminho, o que constatamos é que o peso do milagre faz muito mal a O Sal Desse Mar, porque talvez incerta de jamais ter uma outra chance de realizar um longa, Jacir tenta resumir neste aqui toda a sua vivência e sentimento sobre o "ser palestino". Ao fazer isso através dos corpos de dois personagens, ela os torna apenas "cavalos", quase no sentido espírita do termo, para que encarnem uma série de discursos sobre o estado de coisas político, social e existencial do povo palestino, em suas duas vertentes: a emigrada e o isolado. Entendemos isso bem cedo no filme, e por mais que ele encene algumas sequências de força (a chegada no país, o assalto ao banco, a visita às ruínas), elas nunca deixam de ser as unidades isoladas de ilustração de uma circunstância. Talvez um dia fazer um filme na Palestina já não seja um milagre, e aí talvez Annemarie Jacir possa se desprender do peso da responsabilidade sócio-histórica que tanto engessa este seu filme.

O Sangue Brota (La sangre brota), de Pablo Fendrik
(Argentina/França/Alemanha/Holanda, 2008)
por Eduardo Valente
Comecemos pela técnica, já que ela se impõe como questão: é preciso desconfiar de qualquer filme que "descobre" uma lente que serve para filmar todos os planos, todos os personagens, todas as situações dramáticas - e é o que acontece aqui com Pablo Fendrik, que filma todos os planos de seu filme com uma lente zoom. Entender seu pressuposto teórico não é muito difícil, uma vez que a lente zoom isola todos os corpos: os personagens uns dos outros, mas também do espaço à sua volta. Fendrik quer nos falar, assim, de um mundo onde todos estão na base do cada um por si, e onde todo contato humano tenderá, de início ao no fim, à exploração, à perversão, ao jogo de poder. Um estado de distopia absoluto que, convenhamos, é tão (ou mais) ingênuo quanto o mais inocente dos filmes utópicos onde tudo no mundo é bonito, simples, bem resolvido. Mas o uso desta lente acaba tendo um segundo sentido, que parece mais adequado ao filme: os personagens acabam parecendo sempre sob as lentes de um microscópio. Se tornam assim bactérias, vírus, objetos de estudo do cientista do mundo que o cineasta se revela acreditar ser, e que chama o espectador para partilhar deste seu ponto de vista. A cada um, então, caberá decidir se aceita participar deste "experimento cinematográfico" que iguala o ser humano ao mais insignificante dos micróbios.

Sob Controle (Surveillance), de Jennifer Lynch
(Alemanha/Canadá, 2008)
por Eduardo Valente
O maior desejo do crítico ao começar a analisar um filme cuja autoria remete à filha de um grande cineasta, como é o caso deste aqui, realizado pela filha de David Lynch, é o de poder ignorar completamente esta filiação e ater-se ao que nos apresenta a cineasta em questão. No entanto, Jennifer Lynch não faz este trabalho muito fácil aqui, pois deixa uma tamanha série de indícios de relação com a obra do pai, que se torna impossível não pensar nele. Só que a questão é que enquanto o imaginário sempre rico e um tanto doentio de seu pai se afirma no cinema como um ato de fé na imagem e na imaginação, no filme da filha a história se repete como farsa, e as ferramentas parecem usadas para criar um mundo que, embora eventualmente divirta e eventualmente crie imagens perturbadoras, parece sempre ao nível da pele, do pastiche, da impossibilidade de propor de fato um mundo audiovisual seu, levando à necessidade de habitar num mundo dado, que fascina, mas no qual não se acredita nunca de todo. De fato, talvez a forma mais enriquecedora de se ver o filme seja aproximando a cineasta à personagem infantil do seu filme: uma menina que testemunha os atos mais dantescos de violência, e que viverá para transfigurar aquilo de alguma forma no seu imaginário. Pensamos então na jovem Jennifer, passeando pelos sets de filmagem de um Veludo Azul, por exemplo, e depois tentando lidar com aquilo tudo de alguma maneira. Visto assim, talvez Sob Controle seja mais interessante do que como experiência autônoma de cinema.

Um Segredo (Un Secret), de Claude Miller (França, 2008)
por Eduardo Valente
Durante sua primeira hora, Um Segredo até consegue enfrentar dignamente sua obrigação de ser um exemplar típico do novo “cinema francês de qualidade”, com atores de renome, super-produção e narrativa engessada. Nesta primeira hora, Miller demonstra elegância nas idas e vindas entre 1955 e 1985, conta com o carisma à toda prova de Cecile de France e mantém o interesse. A partir do momento em que uma terceira linha temporal é somada, no entanto (a que configura o tal segredo do título), o filme mergulha de vez no tédio completo, fazendo pouco mais do que ilustrar com imagens e sons uma narrativa que, para além de ser toda mastigada por uma narração em off onipresente, já mais do que antecipamos e compreendemos. É quase triste ver uma Ludivine Sagnier tão apagada e pró-forma em um papel de sofredora orgulhosa num filme que logo se revela que não será lembrado como nada além de apenas mais uma obra sobre o sofrimento judeu durante os anos do nazismo.

Sereia (Rusalka), de Anna Melikian (Rússia, 2007)
por Eduardo Valente
Desde a primeira cena de Sereia, onde conhecemos a origem da personagem principal, Anna Melikian deixa clara sua aposta num certo tipo de encenação domesticada do bizarro, com interesse numa cumplicidade fácil do espectador, um sorriso condescendente que diga “como são humanas estas pessoas tão esquisitas”. Está longe de ser a única semelhança de seu filme com Amélie Poulain. Melikian segue daí para a frente o caminho esperado: história agridoce de seres desconectados precisando de alguma humanidade para encontrarem seu caminho, narrada com a preguiça visual de quem viu muitas vinhetas da MTV e considera que uma sequência delas equivale a construir dramaturgia. Tudo sempre, em busca do riso fácil ou da lágrima mais ainda. De curioso apenas ver como o filme tenta internalizar a questão da linguagem publicitária e sua relação com os sentimentos humanos no mundo de hoje quando, no fundo, usa de uma lógica de construção de sentido bem parecida com a facilidade dos slogans de propaganda.

O Visitante (The Visitor), de Tom McCarthy (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Durante os quinze primeiros minutos de sua duração, O Visitante mantém o espectador interessado pela sua maneira de seguir um personagem que, a princípio, não conseguimos entender porque interessaria ao filme. No entanto, se estamos atentos ao logotipo que abre seus créditos (da Participant Productions, companhia americana especializada na “ficção liberal”) e a algumas pequenas pistas que vão sendo deixadas pelo caminho, não podemos deixar de ter uma pontinha de suspeita de que o pior pode acontecer – só não esperaríamos que acontecesse com a força arrasadora que torna o filme uma quase comédia involuntária. A partir do momento em que seu protagonista (um amargurado professor universitário americano sem motivação na vida após a morte da esposa) conhece um imigrante ilegal sírio em Nova York e se torna o seu “melhor amigo”, o filme passa a desafiar todos os limites para diálogos constrangedores, humanismo de almanaque e previsibilidade narrativa. Nem quando Hiam Abbass (“a” atriz palestina de exportação) entra em cena o filme consegue melhorar, construindo sua narrativa de “conversão” à humanidade do Homem Branco Americano Comum, onde este surge sempre com maior interesse para o filme do que os imigrantes (sempre “dignos” e patéticos na sua dignidade funcional), que servem apenas de pano de fundo para a expiação de culpa em escala global. Ao fim e ao cabo tudo que o filme quer dizer é que a pior coisa que pode acontecer para os EUA é se tornar “que nem a Síria”. Taí uma mensagem politicamente incorreta disfarçada de correção absoluta.

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