textículos - edição especial festival do rio 2009

Ainda a Caminhar (Aruitemo aruitemo),
de Hirozaku Kore-eda (Japão, 2008)
por Fábio Andrade
Logo no começo de Ainda a Caminhar, ouviremos o belíssimo tema de Gonchichi – uma peça ao violão que parece uma versão melancólica da inesquecível trilha de Alain Romans para As Férias do Sr. Hulot, de Jacques Tati. A associação com Tati, porém, não virá pelo humor, mas sim pela leveza que perpassa todo o filme, e que Kore-eda muitas vezes alcança de maneira exemplar. Embora sua temática familiar sugira uma aproximação superficial com o cinema de Yasujiro Ozu, Ainda a Caminhar não tem como virtude o rigor de forma e estrutura, mas sim um trato bastante afinado das ações cotidianas e das relações entre personagens que o filme consegue desenhar com tintas bastante matizadas – o que faz dele mais uma versão doméstica de O Gosto do Chá, de Katsuhito Ishii, do que um novo O Gosto do Arroz no Chá Verde. Kore-eda trabalha temas de peso notável com bastante leveza, o que garante um embarque fácil e bastante prazeroso. A falta de rigor, porém, se torna um empecilho incontornável nos dez minutos finais, quando o diretor põe a perder toda a leveza conquistada, em nome da clareza excessiva de seu encerramento. Ali, com o voice over lamentoso e a vontade abrupta de se produzir o maior número possível de sentidos em seu final, Ainda a Caminhar ganha um peso que ele sabiamente evitara ao longo de toda a projeção, um peso que seu corpo nunca esteve preparado para sustentar.

O Clone Volta Pra Casa (Kurôn wa kokuô wo mezasu),
de Kanji Nakajima (Japão, 2008)
por Fábio Andrade
O Clone Volta Pra Casa é um melodrama de ficção científica onde a clonagem tenta levantar questões psicológicas e cinematográficas de grande potência (o duplo), sempre cobrindo o sci-fi com um verniz de cinema "de arte". Temos um pouco de Kubrick, claro, mas o desejo real de Kanji Nakajima é usar pequenos bocados de diversas referências do cinema contemporâneo: temos ali um papinho sobre a memória pra evocar 2046, de Wong Kar-wai; a existência do duplo que faz pensar em Doppleganger, de Kyioshi Kurosawa; ecos mal ouvidos de O Rosto de um Outro, do Hiroshi Teshigahara; e a fotografia de highlights brancos que traz de volta os hospitais de Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul. Tudo isso, porém, se curva a um simbolismo absolutamente didático, que Kanji Nakajima parece acreditar ser muito mais profundo do que é. Por mais que mimetize os enquadramentos, e às vezes até a encenação de Apichatpong Weerasethakul, Nakajima tira toda a vida dessa apropriação ao adequá-la a um conteúdo dramatúrgico tão bobo quanto auto-importante. É digno de especial atenção o trabalho de edição de som, que faz rimas banais como se elas fossem realmente especiais (o barulho do dedo contra a borda do copo e os drones, por exemplo), constrói atmosferas a partir das cartilhas mais surradas do gênero, e ainda faz cortes pro silêncio como se ele acabasse de ter sido inventado. Ao fim, a única memória deixada por O Clone Volta Pra Casa é a atroz estupidez com que ele consegue reduzir muito do que de mais desafiador foi feito no cinema recente a um tedioso jogo de convenções.

Como Desenhar um Circulo Perfeito,
de Marco Martins (Portugal, 2009)
por Filipe Furtado
Logo nos primeiros planos fica claro que Como Desenhar um Circulo Perfeito busca um peso muito grande para as suas imagens. Se resta algo de interessante na experiência do filme é justamente notar como uma série de códigos de filme de arte são resgatados pelo seu diretor para sublinhar sua atmosfera de dor e sofrimento. Trata-se de uma história de incesto, mais especificamente de um jovem obcecado por trepar com a irmã, e o filme não perde um segundo sem reforçar sua atmosfera de sofrimento culpado. Marco Martins – que antes realizara o bem recebido Alice – parece acreditar que o único registro possível para o seu material é o mais denso e pesado possível. Só que, no lugar do grande mergulho na obsessão do desejo que parece buscar, esta encenação pesada só reforça o desconforto completo do filme consigo mesmo. Como Desenhar um Circulo Perfeito se confirma a cada plano um filme mais travado, incapaz de retirar nenhuma potência real de suas imagens, por mais que busque impacto e repita de forma constrangedora seu ciclo de sofrimento. Martins, fica claro, viu e estudou muitos filmes, mas retirou pouco do verdadeiro significado da expressão mise-en-scène: repete muitos procedimentos que conhece, mas é incapaz de criar um diálogo entre estes procedimentos e o material que filma.

Embarque Imediato, de Allan Fiterman (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
No cinema, como de resto em qualquer outra parte da vida, ambições são sempre bem vindas – no entanto, quanto maiores sejam, mais fortes podem ser as quedas. Talvez isso ajude a entender porque a queda que sentimos vendo Embarque Imediato pareça tão grande: aquilo que poderia ser apenas um exercício de gênero sem maiores habilidades ou talento vira um desastre justamente porque almeja ser mais do que isso. Por um lado, há o claro interesse em propor um clima para além do realismo naturalista, sob influência forte dos tons almodovarianos (algo que surge em cena desde uma personagem que fala em espanhol até a relação direta de um personagem com o cinema clássico, aqui via Gilda); por outro, a ambição de fazer uma observação aguda sobre o desejo brasileiro de emigrar para o Primeiro Mundo em busca de oportunidades. O problema é que, no primeiro caso, falta a Fiterman o domínio do artesanato básico do cinema, algo que Almodóvar sempre teve e que especialmente hoje esbanja. Por um lado, Embarque Imediato parece editado com um machado, retirando qualquer possibilidade de clima no interior de suas seqüências já bastante problematicamente encenadas e decupadas (os exemplos são inúmeros, mas a cena de sexo e aquela em que Marilia Pêra aparece fazendo ginástica são os ápices); por outro, no desejo de colocar os atores um tom acima do naturalismo, o filme se perde em desempenhos quase grotescos (ou totalmente, no caso de José Wilker), nos lembrando sempre que a sátira e a farsa não são uma simples exacerbação da realidade para os campos de qualquer comicidade. O que é uma pena nisso tudo é que, no meio de toda a inaptidão de linguagem e no discurso sócio-econômico simplório, há ali um ponto de interesse inegável: a relação amorosa entre um casal tão improvável como o formado por Marilia Pêra e Jonathan Haagensen. Infelizmente, porém, Embarque Imediato não consegue criar nem narrativa, nem dramaturgia que nos permita minimamente partilhar desta relação.

Eu, Ela e Minha Alma (Cold Souls),
de Sophie Barthes (EUA/França, 2009)

por Eduardo Valente
Desde a leitura da sinopse de Eu, Ela e Minha Alma, é mais do que justificada a impressão de que o filme tenha mais do que uma mera semelhança com Quero Ser John Malkovich. Só que aqui o ator que interpreta a si mesmo é Paul Giamatti (de fama curiosamente semelhante com a de Malkovich), e não só ele é o protagonista do filme (o que Malkovich estava longe de ser), como o que ele quer é deixar de ser Giamatti, por assim dizer – e, para isso, vai procurar uma empresa que promete “armazenar almas”. A sequência em que ele entra na empresa pela primeira vez, e se consulta com o médico interpretado por David Strathairn faz crer que o filme enveredará pelo caminho da farsa absoluta através de um diálogo bastante inteligente, dito num timing preciso por estes dois ótimos atores. No entanto, desde a abertura do filme há uma montagem paralela que traz uma outra personagem para o foco da narrativa, uma russa que vamos ao pouco entendendo como se relaciona com a história de Giamatti. Quando a câmera está com ela, muda de registro: vai para a mão, com os tiques mais óbvios de um dito “realismo”. Aos poucos as histórias se unem, e aí fica claro que, sem abrir totalmente mão do humor, o filme deseja que levemos minimamente a sério questões como a relação da alma com o indivíduo ou os abusos de empresas com empregados de países como a Rússia. E aí é um esforço excessivo que se pede do espectador: por um lado, que acredite numa idéia tão esperta e absurda quanto afirmar que a alma de alguém, uma vez extraída do corpo, pode assumir a forma de um grão de bico; por outro, filmar cenas “sensíveis” de subjetividade “dentro da alma” de Giamatti, em que ele se vê bebê, com a mãe, a mulher (ficcional, interpretada por Emily Watson), etc. Em grande parte é por querer rezar para estes dois santos bem distintos que, passado seu curto momento de graça inicial, o filme vai perdendo o interesse do espectador, que não consegue mais nem levar a sério o absurdo nem rir sem preocupações. Pensando bem, esse sentimento tem realmente muito a ver com o trabalho de Charlie Kaufman.

Eu Matei Minha Mãe (J'ai tué ma mère),
de Xavier Dolan (Canadá, 2009)
por Filipe Furtado
Muito do interesse que Eu Matei Minha Mãe desperta no circuito de festivais deriva da proximidade do jovem cineasta para com seu material. O próprio Dolan interpreta o adolescente gay que mantém uma relação de amor e ódio com sua mãe, e é inegável a energia que injeta no filme. Seria extremamente injusto chamar Dolan de charlatão, pois por mais óbvios que sejam boa parte dos recursos “artísticos” do qual lança mão é visível que trata-se de um filme sentido. O problema é que nada disso impede Eu Matei Minha Mãe de ser um filme, no fundo, muito tolo. O apelo de um diário adolescente em forma de greatest hits de cinema de arte pode ser grande, mas seu limite é óbvio. Na maior parte do tempo, Dolan varia o registro entre o psicodrama quase amador e a diluição de muitos filmes melhores. Resta uma ou outra cena que despertam algum interesse e uma impressão de que tudo é um tanto calculado demais (como a decisão de incluir uma cena em que o namorado aponta como o alter-ego de Dolan é difícil próximo ao fim do filme). Fica também a certeza de que entrega e a energia do cineasta nunca compensam de todo sua falta de talento.

Five Minutes of Heaven, de Oliver Hirschbiegel (Inglaterra, 2009)
por Julio Bezerra
Em seu novo filme, Oliver Hirschbiegel encara apenas indiretamente o legado de violência que tomou conta da Irlanda do Norte por três décadas, até a assinatura do The Good Friday Agreement, em 1998. O que ele busca aqui não é um drama social, mas um conto sobre cura e perdão. Hirschbiegel psicologiza os personagens em demasia, mas eles são, na verdade, muito pouco desenvolvidos pelo filme. São tipos grosseiramente elaborados, aparentemente desprovidos de qualquer experiência para além da situação que os levou até ali. Os diálogos são estranhamente melodramáticos e o ritmo é agitado. Seus dois personagens principais falam, falam e falam, com direito a longos monólogos internos de ambos os lados. É curioso como Five Minutes of Heaven se conjuga com o filme anterior de Hirschbiegel, A Queda - Os Últimos Dias de Hitler (2004). Naquele filme, éramos conduzidos pelo ponto de vista dos culpados, e convidados a manifestarmos em relação a eles uma compreensão talvez benevolente. A Queda deixava o espectador na incerteza: caberia a nós o trabalho de formarmos nossa própria opinião. Embora a encenação de Hirschbiegel fosse digna de alguns elogios, o cineasta levava em segundo plano os pressupostos políticos da própria estética que realiza. Esse também parece ser o maior problema de Five Minutes of Heaven: Hirschbiegel se empenha desesperadamente para criar tensão. Vale tudo: uma agulha caindo no chão, o bater da porta do carro, etc. Como um filme que prega a paz consegue (e busca) ser mais catártico e convincente quando descreve e encena atos de violência? O que se percebe é que Five Minutes of Heaven se afirma em uma questão sem ter uma questão de fato a nos apresentar. Essa busca por perdão e paz é uma questão colocada para o filme e não pelo filme. Neste sentido, Hirschbiegel é um narrador um tanto irresponsável.

Intruso, de Paulo Fontenelle (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
Impossível não olhar com alguma simpatia um filme totalmente auto-financiado, que dialoga com o cinema de gênero. Só que Intruso sofre de dois problemas decorrentes justamente destas suas premissas que impedem que a simpatia prévia se consolide em algo maior a partir da experiência de assisti-lo. No primeiro caso, o fato de que a produção hiper-independente deixa marcas no resultado final que trabalham contra o filme, com problemas principalmente na finalização da imagem e do som que são difíceis de superar pelo tipo de trabalho audiovisual a que o filme se propõe. No diálogo com o gênero, a questão é que ele aqui vem filtrado por um certo cinema da manipulação, parente de alguns trabalhos de Von Trier e Haneke, onde o gênero surge menos como projeto assumido e mais como matriz distante para servir a um desejo de certa seriedade auto-importante, que também não se realiza de todo. Ambos os empecilhos até poderiam ser superados pelo filme, só que ele esbarra num outro problema fundamental: entre a escritura dos diálogos e a presença em cena dos atores (principalmente Eriberto Leão, como a figura central da narrativa), o filme não chega a construir sua verdade interna de uma forma realmente pregnante. Isso se deve tanto às repetições constantes em torno dos mesmos temas morais, altamente discursivos nos diálogos, quanto à dificuldade em se construir personagens de fato individualizados pelos quais nos comovamos. Como resultado, mesmo com alguns bons momentos, Intruso mantém uma certa distância que não serve bem a suas intenções.

Inversão, de Edu Felistoque (Brasil, 2009)
por Filipe Furtado
É no mínimo curioso que Inversão faça parte da seção Novos Rumos da Première Brasil já que é impossível imaginar que novo rumo foi encontrado pela curadoria neste filme. A não ser que o observamos em conjunto com alguns outros filmes da Première (Bellini e o Demônio na competição, Sem Fio também no Novos Rumos) como exemplares finais de um cinema brasileiro que, na busca de tentar chegar ao que seria um cinema moderno e contemporâneo, termina incapaz de produzir um único plano de cinema. Não há uma única imagem articulada em Inversão: dois planos que construam um sentido, um posicionamento de câmera que sugira que se gastou mais que alguns segundos se considerando como filmar determinada seqüência. Basta dizer que o mais próximo de um pensamento estético em Inversão é tentar sugerir uma doença generalizada através de filmar mais da metade do filme com um filtro verde-vômito. Fora isso, estamos diante de um típico exemplar de um cinema completamente incapaz de existir simplesmente como tal, com sua trama de gênero seqüestrada por uma constante tentativa de ser mais do que isso. Não deixa de ser impressionante a tentativa do filme de se colar nos ataques do PCC em busca de significância, a despeito de que sua única função no filme seja justificar o casting de Marisol Ribeiro como a menos crível delegada da história do cinema. Aí percebemos que o projeto de Felistoque deixa de ser só incompetente, e se torna torpe mesmo.

Jaffa (idem), de Keren Yedaya
(Israel/França/Alemanha, 2009)

por Eduardo Valente
Cinco anos depois da Camera D’Or que ganhou em Cannes com seu primeiro longa (OrMon Trésor), Keren Yedaya volta com este filme que traz as mesmas duas atrizes principais, que eram boa parte da força daquele trabalho. Só que aqui há um universo maior em torno delas, tanto criando um núcleo familiar como lidando com as questões sócio-econômicas das relações entre árabes e judeus em Israel, dentro das especificidades da cidade que dá título ao filme e onde se estabelecem relações estreitas, embora não sem tensões, entre as comunidades. Jaffa começa atrelado a um realismo de registro já presente no filme anterior (com a adição de um uso curioso do zoom, que lembra em parte o trabalho de um Robert Altman e, se consegue momentos fortes, também soa um tanto arbitrário aqui e ali). Logo, porém, sua estrutura caminho para a tragédia, com algo de Romeu e Julieta, o que impõe uma outra relação do espectador com o material, onde a ficção se afirma como tal pela primeira vez no cinema da cineasta. Em ambos os momentos, porém, o corpo em cena de Mali (Dana Ivgy) é o palco onde se dão todos os dilemas do filme (e do mundo judeu em Israel): ela internaliza os preconceitos, os desejos e as impossibilidades de uma relação que é tanto humana quanto étnico-religiosa. Neste mundo da ficção com peso de conto moral, o final com seu congelamento da imagem parece particularmente feliz como escolha: no olhar congelado da criança para o pai desconhecido todos estes sentimentos ressurgem, impondo necessariamente um futuro incerto. Se este fica nas mãos de cada pessoa, não se ignora que a tragédia ou a felicidade surgem tanto como possibilidades de livre arbítrio quanto como imposições de fora.

Jericó (Jerichow), de Christian Petzold (Alemanha, 2008)
por Fábio Andrade
Em sua primeira meia hora, Jericó consegue um curto-circuito formal francamente interessante. Christian Petzold constrói uma estrutura de sensível leveza, com características que fazem lembrar Hong Sang-soo ou Aki Kaurismaki. Estão lá as atuações esvaziadas, a predominância ligeira dos tableaux, a fotografia pontualíssima, os enquadramentos discretos e a depuração da cena aos seus elementos mínimos e essenciais. O curto-circuito, porém, vem pela maneira como o diretor usa essa leveza de estrutura, mas não incorpora esse sentimento ao que ele filma. Pois Jericó é um filme de suspense, e se mantém envolvente enquanto essa leveza produz um mistério que lhe é dissonante. Mas logo o filme se assume confortavelmente como mais uma adaptação de O Destino Bate à Sua Porta – livro de James M. Cain adaptado inúmeras vezes para ao cinema, boa parte delas por diretores mais talentosos que Petzold. Uma vez definidas as razões para o incômodo suspense, a força de Jericó se esvai quase por completo, e o minimalismo das construções cênicas deixam entrever que, embora um bom artesão de climas, Petzold tem limitações incontornáveis de dramaturgia.

O Mercado (Pazar - Bir ticaret masali), de Ben Hopkins
(Alemanha/Turquia/Reino Unido/Cazaquistão, 2008)

por Fábio Andrade
O Mercado é um melodrama que combina dramas sociais com a intenção bastante clara de não ser, ainda assim, uma experiência pesada para o espectador. Todo os anos o Festival do Rio traz diversos filmes que respondem a esse formato, muitas vezes já legitimados por festivais estrangeiros (no caso de O Mercado, o maior feito de currículo é o Leopardo de Prata para o ator Tayanç Ayaydin, no Festival de Locarno), que se acumulam em uma pilha de nulidades destinada a ser esquecida antes mesmo do fim da temporada de filmes. O Mercado é apenas mais um, e a falta de substância cinematográfica de filmes como esse não é, sequer, um desafio crítico; como não há cinema de onde partir, não há crítica de cinema a se fazer. O que existe é uma decupagem pálida, com o desejo de parecer suficientemente "artística" para entrar em festivais, partindo da inversão etnocêntrica que se assume o "outro" e, como tal, é preciso revelar algo da "realidade" desse local exótico para suprir a ingenuidade dos olhares cultivados do primeiro mundo. O protagonista é um contrabandista – afinal, é preciso motivar reflexões sociais – mas somente por força das contingências, pois seu bom coração o levará a cometer um crime ético que complicará o resto de sua vida, que o filme – sem sujar as mãos – apenas sugere com um final aberto. Ben Hopkins troca a doçura pela docilidade, e filmes dóceis são rapidamente domesticados pela vida improdutiva do mercado de festivais.

Morgue Story - Sangue, Baiacu e Quadrinhos,
de Paulo Biscaia Filho (Brasil, 2009)

por Eduardo Valente
Paulo Biscaia Filho tem uma carreira estabelecida como diretor de teatro, com um conjunto de peças onde trabalha sob a influência direta dos quadrinhos e do cinema de gênero, tentando trazer para os palcos determinadas interseções entre estas linguagens e suas sensibilidades. Pois em Morgue Story, o caminho feito é o contrário: ele pega uma das suas peças e traz para o cinema. De alguma forma é um processo que tem algo de regressão, portanto, porque o que temos é algo que, de alguma maneira, já vinha do cinema, e que agora parece voltar a ele depois de passar por uma outra linguagem. Não por acaso, a sensação que fica é de que algo se perde nestas idas e vindas, como aconteceria num processo de seguidas cópias de fitas de vídeo VHS, uma para outra. Isso talvez aconteça pelo fato de que, se o cinema surgia como referência direta nas suas peças, aqui ele parece continuar sendo pensado a partir de uma idéia de confluência de linguagens (quadrinhos, teatro, rock), e não como uma linguagem específica. Ao contrário dos trabalhos de um Robert Rodriguez ou um Tarantino (outras influências bem firmes do diretor) em Grindhouse, por exemplo, aqui a cinefilia parece menos o alimento que gera um movimento pessoal potente e único, e mais um fetiche. Isso dá ao filme pouco mais do que o sentido de um pastiche do pastiche, onde o cinema de gênero parece presente muito mais como um molde de piadas do que exatamente como algo em que se acredita. O filme parece estabelecer com a idéia de cinema de horror uma relação parecida que um quadro do Casseta e Planeta tem com a novela das oito ou de um esquete do Saturday Night Live. Por isso, assim como acontece com qualquer um destes, a graça e o interesse dependerá sempre da qualidade das piadas e das atuações. E embora estes encontrem momentos inspirados aqui e ali, a sensação mais duradoura é um pouco a que temos nos filmes oriundos destes mesmos programas de TV: a de que a piada funcionava melhor quando era curta.

Porco Cego Quer Voar (Babi buta yang ingin terbang),
de Edwin (Indonésia, 2009)

por Eduardo Valente
Em mais de um sentido, Porco Cego Quer Voar é o tipo do filme que nos lembra do tamanho da nossa ignorância na prática deste ofício da crítica (ou da nossa ignorância e ponto). Primeiro, porque fica bem claro que o que está principalmente em jogo no filme é uma questão étnica (e religiosa) da composição da população indonésia que nos escapa quase completamente, pelo menos nas suas nuances, significados específicos e, portanto, apreciação das pequenas cenas (e ironias, algo tão importante neste filme). Segundo, no sentido mais estrito do cinema mesmo, porque da mesma forma certamente a nossa ignorância sobre o cinema do sudeste asiático como um todo ajuda a entender porque nossa percepção talvez sinta a necessidade de se escudar no pouco que conhece deste (Apichatpong Weerasethakul, Pen-ek Ratanaruang, Eric Khoo – todos eles de países outros que a Indonésia, o que só aumenta um sentido de “pré-conceito” generalizante, ainda que meio inevitável) para encontrar algum tipo de diálogo estético, de contextualização mínima ao que nos propõe de forma tão particular este filme de estréia de Edwin. Com isso tudo, o passeio pelas imagens (e sons, bem importantes aqui) de Porco Cego Quer Voar não é um que se faça com facilidade, mas sim com a sensação constante de uma alteridade quase total, que fascina quase sempre, mas que não se entende de fato. No entanto, o que não temos como deixar de perceber, para além de qualquer coisa, é que se trata, no meio de um festival sempre marcado por muitos filmes bem formatados para o mercado de festivais internacional, de um corpo estranho, agressivo até. E esta agressão estético-narrativa, além da lembrança do tamanho de nossa ignorância (e a vontade de diminui-la um pouco, pois é impossível não chegar em casa e pesquisar sobre a Indonésia), são mais do que motivo suficiente para fazer da experiência de ver Porco Cego Quer Voar algo mais que necessário. Mesmo que, por enquanto, ainda precisemos falar mais de nós mesmos que do filme, num texto que deveria ser sobre ele.

Salamandra, de Pablo Aguero (Argentina/França/Alemanha, 2008)
por Julio Bezerra
Pablo Aguero evoca o que de melhor o cinema dos hermanos vem fazendo nos últimos anos: o renovado realismo, o corpo como condutor de hipóteses narrativas e o imbricamento primordial entre paisagem e personagens. Esta sua estréia em longas (embora o cineasta venha de uma carreira laureada nos curtas), contudo, alimenta um gosto diferente. Aguero vai fundo na história de uma mãe (Dolores Fonzi), recém-saída da prisão, que foge com o filho (Joaquín Aguila) para a Patagônia, uma região que abriga todo tipo de fugitivo, entre dissedentes políticos e hippies. O universo desse cinema, no entanto, é recheado de lacunas. Salamandra esbanja algo de incontrolado e consegue trabalhar o onírico em situações duríssimas. Isso porque Aguero e sua câmera aderem ao olhar do menino. Tudo é filtrado pelo olhar contraditório e lúdico do personagem. A narrativa segue aos trancos e barrancos porque assim Inti a percebe. A força maior do filme é essa atenção dada ao personagem, ao ator, ao ser humano dentro do espaço que ele ocupa. Na verdade, pouco se passa de fato em termos de trama - embora o filme jamais faça um elogio da contemplação. Salamandra é um longa de climas, de trocas, de encontros, de confrontos entre os personagens, que tiram seu sentido justamente deste acúmulo de experiências. É bem verdade que talvez falte uma união mais equilibrada entre esse diferencial de entrega ao olhar de seu personagem e a capacidade de articulação narrativa. Salamandra é também evidentemente um primeiro filme. O trabalho de câmera é por vezes redundante e a atuação de Dolores Fonzi externa a loucura de sua personagem de maneira talvez excessiva. Mas Aguero consegue extrair do meterial um filme pessoal e arriscado.

Sem Fio, de Tiaraju Aronovich (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
O caminho mais fácil para descartar Sem Fio como projeto seria chamá-lo de uma espécie de Crash (não o do Cronenberg, claro, o ganhador do Oscar) com déficit de atenção, disfarçado de linguagem hiper-moderna – aonde somam-se aos já mais que clichê balançar constante de câmera e cortes inumeráveis dentro das cenas, um trabalho de redesenho de cores e estouros de luzes por efeitos de pós-produção e o uso de um sem número de efeitos na trilha musical eletrônica. No entanto, haveria algo de inexato nisso, porque em Crash há um projeto de fato: reduzir a experiência humana a um modelo de humanismo onde há lições a serem aprendidas (pelos personagens, mas principalmente pelo espectador) com cada ação e seus resultados. Escudado por uma menção em cena (com todo o peso de bula) à teoria do caos, Sem Fio obviamente não tem este projeto, pois de fato não há lição nenhuma a ser aprendida por ninguém ao passar pela história dos seus personagens. Há apenas o desejo de se afirmar “moderno”, “ousado”, “atual”, matando, no caminho, qualquer sentido que estes termos já tiveram. A única lição aqui é a de que a linguagem do cinema parece chegar a um paroxismo onde, após ser infestada de ferramentas pelas suas decorrências (TV, publicidade, videoclipe), ela volta ao formato original desprovida de qualquer sentido, como se após anos e anos de evoluções (não no sentido de melhorias, mas de caminhadas para a frente, sempre), o resultado proposto fosse uma incapacidade de olhar para qualquer coisa com uma câmera. Neste sentido, a simples existência de Sem Fio representa uma morte para o cinema e sua linguagem, e por isso mesmo um desafio para o crítico frente a este cadáver barulhento e epilético. Afinal, há crítica após a morte?

A Town Called Panic (Panique au village),
de Stéphane Aubier e Vincent Patar (Bélgica, 2009)

por Eduardo Valente
Panique au village é baseado em personagens já explorados por seus diretores em curtas, e numa série de filmes para a TV. Os dois diretores orgulham-se particularmente de sua técnica de animação que, se não é exatamente tosca (até porque certamente depende de muito domínio pra ser concretizada), adora parecer ser, quase como uma posição política. Panique au village na verdade tem boa parte de seu charme na junção desta técnica (que usa bonequinhos de brinquedo vintage) com um universo narrativo marcado pela mais absoluta falta de lógica. O filme tem uma história, muita ação e relações entre personagens, mas de um jeito absolutamente particular, que faz pensar quase numa escritura automática, como se a cada idéia nova equivalesse uma mudança no caminho da narrativa. É esta sensação quase de "cinema ao vivo" que o filme traz que permite que ele mantenha certo interesse ao longo da duração, mas é inegável que dá para compreender porque os personagens, e o seu ambiente, surgiram em filmes de 5 minutos ou menos: provavelmente é neste formato que eles ainda encontram sua maior força, que se dilui um tanto na longa duração.


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