O Hospedeiro (Gwoemul), de Bong Joon-ho
(Coréia do Sul/Japão, 2006)
por Paulo Santos Lima

A juventude em marcha de Bong Joon-ho

O plano inicial geralmente diz muito sobre o que será um filme. Em O Hospedeiro, temos uma rigorosa câmera fixa nos apresentando, quase frontalmente e em tempo levemente alongado, dois cientistas, cada um num lado da tela, num laboratório sediado numa base militar americana em Seul, 2000 (conforme nos diz o letreiro). O norte-americano ordena ao seu assistente, sul-coreano, que despeje uma remessa vencida de ácido fórmico no Han, rio que atravessa Seul, o que causará uma contaminação sem precedentes na capital. A ordem é relatada num campo/contracampo dramático, em planos próximos, até o travelling lateral indo do despejo do líquido na pia às dezenas de frascos vazios que estavam no extracampo. Se o cunho político de O Hospedeiro se constrói em toda essa seqüência inicial, o rigor que Bong Joon-ho deixará impresso em cada instante desse filme (que chega bem perto de ser uma obra-prima) está anunciado no primeiro plano.

O Hospedeiro encadeia extraordinariamente as suas seqüências, e já temos, logo após o prólogo, um pulinho para 2002 e um salto definitivo para o presente. Três tempos ilustrando a genealogia do monstro, que é um girino adulterado pela contaminação: enorme, meio desengonçado, mistura de monstro marinho com alien, criado em CGI. O que, curiosamente, diz da responsabilidade dos EUA sobre o monstro: diegeticamente, pela ordem do cientista militar; extradiegeticamente, Bong ter procurado uma empresa americana para confeccionar sua criatura. Ou seja, uma responsabilidade que nasce com a imagem, o que não aprisiona o filme numa malha metafórica, mesmo trazendo para dentro da trama vários elementos que ligam o cenário à história da Coréia do Sul. O acerto é que, ao privilegiar o exercício de cinema (montagem, mise-en-scène, enquadramento), Bong não impõe um contexto, mas sim o constrói no fluxo da narrativa.

A história tem como protagonista Kang-du Park, um herói um tanto alquebrado para os padrões convencionais: dorme compulsivamente (é assim que o filme nos apresenta ele, babando de sono em cima de revistas), é mais irmão que pai de sua Hyun-seo, inclusive cedendo suas latinhas de cerveja à filha. Ele é parte de uma família entortada, com irmão desempregado (que lutou pela democratização da Coréia), irmã medalha de bronze em arco e flecha, e o patriarca que fora abandonado pela mulher graças a umas biritas. Esse núcleo irá à caça do monstro, que seqüestra a menina Hyun-seo para os esgotos de Seul.

A carga de expressividade do filme está nessa composição que naturaliza as coisas, que simplesmente coloca no centro da imagem itens simbólicos: a relação da “coisa” com o esgoto deixa claro a intimidade dele com os homens, com a geografia da cidade e com a idéia de dejeto. Essas fezes traduzidas em besta são o motivo para a intervenção norte-americana no país, alegando uma suposta contaminação virótica.O mesmo para a família: prato cheio para serem os representantes de todo o país, os Park são, antes de tudo, presenças na tela – como imagens e como elementos úteis à trama, neste filme que é, antes de tudo, um grandessíssimo e bem elaborado cinema de gênero à coreana.

O tom cômico, preponderante, coopera para essa liberdade de significados, e é também notável como o filme não cai numa paródia trash, mesmo abraçando pós-modernamente (e, repito, comicamente) vários gêneros, do sci-fi dos anos 50 (a primeira seqüência) à comédia familiar (os geniais diálogos), passando pelo humor americano dos anos 80 e os blockbuster de ação dos anos 90/2000 (uma inofensiva escarradinha que aterroriza a horda que atravessa a rua e as cenas “catástrofe-CGI”). Somente alguém habilidoso como Bong Joon-ho — talvez o maior nome do cinema coreano atual, pelo menos deste que chega aqui nas mostras — para equalizar tantos cinemas sem perder o controle da mise-en-scène. Fiquemos em alguns procedimentos: um magnífico plano-sequência na primeira saída do monstro das águas, a montagem articulando o desencontro de Kang-du com sua Hyun-seo num trocar de mãos (planos), a câmera lenta favorecendo o combate épico entre os protagonistas e a criatura, a atenção à lança que espadou a coisa.

Imagens cujas palavras não conseguem traduzir a dimensão desse belo longa. Porque as coisas simplesmente estão lá, na tela, como diria o crítico Inácio Araújo. Imagens que, mesmo livre da carga de significados externos, constróem dos mais sólidos e imagéticos discursos políticos do cinema contemporâneo. Basta a poesia que nasce do combate final, quando a multidão, em meio ao agente laranja lançado pelos EUA para conter o monstro, que faz par com as cenas que os noticiários veicularam década e meia atrás, quando a juventude coreana lutava pela democratização, numa nação que era mais quintal americano que país soberano. Aqui, num delírio visual impressionante, Bong usa uma fumaça adoentada para pintar todo um conteúdo dramático e extático, algo irmão do cinema de monstro japonês, entre Godzilla e Ultraseven - ,mas com juventude em marcha perdida na névoa poluente e incerta, cena bela naquilo que tem de pictórica e assustadora naquilo que remete de fim do mundo. Essa é a juventude em marcha de Bong Joon-ho.


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