in loco - especial É Tudo Verdade

A Tênue Linha da Morte (The Thin Blue Line),
de Erroll Morris (EUA, 1988)
por Julio Bezerra
(colaboração especial para a Cinética)


Discursos e memória em questão

Errol Morris é um cineasta investigativo; um profissional da especulação: em seus filmes, há sempre um processo de descoberta em curso. Seu cinema questiona a relação entre linguagem e realidade. Morris, que trabalhou como detetive particular por dois anos entre a realização dos filmes Vernon, Florida (1981) e A Tênue Linha da Morte (1988), esbanja um enorme talento para reunir e ordenar evidências e informações. Explora a relação sempre problemática e fascinante entre a realidade e a sua ficionalização, entre o fato e suas versões.

Neste sentido, A Tênue Linha da Morte talvez seja mesmo seu filme mais paradigmático. Antes, um pouco de seu contexto. Em 1985, Morris pesquisava sobre um polêmico psiquiatra da polícia do Texas (EUA) quando deu de cara com um caso que lhe pareceu, claramente, um grave erro judicial. O caso envolvia o assassinato de um policial em Dallas, morto a tiros ao abordar um automóvel para uma averiguação de rotina. Detido, o delinqüente juvenil David Harris, que estava ao volante do carro abordado, acusou o forasteiro Randall Adams, a quem ele estava dando carona, pelos disparos. Apesar das evidências contra Adams serem inconsistentes, a Justiça local o condenou à morte.

O cineasta decide então conversar com todas as pessoas envolvidas na condenação de Adams: investigadores, policiais, testemunhas, advogados. Morris constrói um enorme dossiê, com entrevistas, prontuários da justiça, recortes de jornal, mapas, álbuns de família, relatórios forenses, e reconstituições. A Tênue Linha da Morte é resultado desse processo, construído como uma espiral movendo-se em torno de si mesma. Morris parece querer tingir nossa percepção da realidade com um colorido paranóico, nos contaminar pela mente de um detetive obcecado pelas inúmeras conexões entre fatos isolados. Ele tenta nos instalar em seu cérebro.

A Tênue Linha da Morte trabalha certamente com o imaginário noir. O filme é como uma versão documental de A Curva do Destino (1945), de Edgar G. Ulmer, um longa que enxuga o gênero à sua essência. Morris imprime ao documentário uma sensação de inevitabilidade, de inexorabilidade. A tragédia é insinuada como uma possibilidade constante. No corredor da morte, Adams transborda um fatalismo inabalável e discursa como em um recital formal.  O personagem é refém das versões contadas por terceiros. Parte substancial da versão aceita pela polícia pode ter sido contada pelo verdadeiro assassino, conforme nos mostra o filme. Adams parece preso a uma roda sem fim, perdido em um espaço a cada minuto mais complexo e insuportável. Como disse certa vez Terrence Rafferty, Adams é como um personagem de Borges.

A Tênue Linha da Morte é um filme de entrevistas. E Morris parece ter aprendido com outro grande documentarista americano, Emile de Antonio, os perigos inerentes às entrevistas. Assim, em vez de sucumbir à consciência do personagem-testemunha, o filme conserva uma consciência independente, uma voz própria. O documentarista nem sempre aceita a palavra das testemunhas. Não é a todo mundo que se pode dar crédito. E nem tudo é verdade. O filme então explora, relembra, comprova, duvida. A voz textual de Morris contesta as afirmações de seus entrevistados, mas sem se dirigir diretamente ao espectador. Essa contestação não é apenas a defesa explícita de algumas testemunhas contra outras. A estratégia expositiva deixa claro que nenhum depoente diz toda a verdade.

Em A Tênue Linha da Morte, há uma voz crítica que emerge da tecedura das vozes participantes e do material que trazem para sustentar o que dizem. Em determinado momento, o depoimento de uma testemunha-chave da acusação é enfraquecido pela decisão de Morris de cortar para cenas de uma série de filmes da década de 1940 sobre Boston Blackie, um ladrão que se tornou justiceiro. Essa montagem imprime um tom cômico às alegações da testemunha. Não há uma voz de Deus ou uma autoridade para nos guiar pelo que vemos e para sugerir o que devemos deduzir. Mas os sinais acumulam-se em todos os meios de representação disponíveis para o cineasta. Morris dá voz a um ponto de vista que, embora tácito e indireto, fica difícil de ignorar. Ele defende claramente a inocência de um homem condenado.

Morris fala através de todos os meios disponíveis para o cineasta, da trilha sonora fantasmagórica de Philip Glass, ao slow motion nas cenas reencenadas. O documentarista, um famoso diretor de comerciais (da Adidas à Hewlat Packard), usa entrevistas, fotos de jornais, prontuários e os mescla a material encenado (as várias reconstituições do crime). Ele se esforça, sobretudo, para seduzir a imaginação do espectador e evocar a cena descrita de maneira a nos instalar no interior dela. Sentir, e não apenas entender, a verdade ou a justeza daquilo que Morris pretende transmitir. Assim, quanto mais estratégias dramáticas forem colocadas a serviço da narrativa, maior será a expectativa e o engajamento do público. Quanto mais intensas as sensações, mais convincente será a narrativa, seja em suas posições, seja nas evidências de realidade.

Morris faz ainda um uso interessante da reencenação. A cada nova versão do assassinato, o documentarista reencena o homicídio, incorporando à cena original as pequenas diferenças que surgem do discurso dos entrevistados. As reconstituições potencializam o aspecto irônico desta voz crítica do filme. Morris ressalta também a natureza escorregadia da memória. Mais do que ilustrativas, as reencenações funcionam como comentários aos depoimentos dos entrevistados, atestando o fato de estas falas conterem mentiras e distorções, muitas vezes mediadas pela própria mídia, de elas serem apenas versões entre muitas outras. Estas reconstituições mostram claramente que cada seqüências de imagens é tão verdade ou mentira como a anterior.

Morris não acredita em um cinema que se contente em observar. A verdade não surge da observação passiva. Precisa ser provada, confrontando as várias versões de um fato. Em A Tênue Linha da Morte, Morris rejeita a suposta dicotomia entre verdade e ficção. Para ele, não se trata de uma simples escolha entre verdade e ficção, mas da elaboração de uma série de estratégias ficcionais para se chegar a uma verdade relativa. A Tênue Linha da Morte nos ensina sobre a dependência mútua entre o factual e o ficcional. O documentário de Morris se mostra consciente de seus artifícios e se mantém sensível em relação às flutuações entre o fato e suas versões.

No entanto, o mérito de A Tênue Linha da Morte não é exclusivamente cinematográfico. Na verdade, a maior conquista de Morris foi ter provado a inocência de Adams. Por causa deste filme, um homem condenado à morte foi posto em liberdade.

Março de 2008

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