in loco - III jornada de cinema silencioso
Thomaz Reis: major ou cineasta?
por Cléber Eduardo

Por que tratar de Thomaz Reis? Porque suas imagens em 2009, vistas na Jornada do Cinema Silencioso, realizada em agosto último na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, são explicitamente de um cineasta, mesmo que, para muitos, Reis seja visto ainda como um cinegrafista do governo, no máximo como etnógrafo a serviço da República, com missões a cumprir. E por que abolir de seu nome o posto de Major? Porque é necessário deixar de encará-lo como cinegrafista oficial tão e somente, para também lidar com a força de suas imagens para além da intenção e uso delas.

A alta carga historiográfica e ideológica de nossos pesquisadores, aliada ao quase desprezo de nossos críticos e estudiosos de cinema, tem transformado esse cineasta em um objeto no qual são aplicadas idéias de fora do cinema. Seria possível pensá-lo, exclusivamente, como um cineasta sem posto? Ou é seu posto que o permite, pelo lugar ocupado, tornar-se um cineasta? Essas duas perguntas são importantes para se iniciar uma reavaliação de estratégias de abordagens de seus filmes e de sua postura enquanto alguém responsável por decisões de filmagem.

Afirmação de um cineasta

Thomaz Reis não é qualquer cineasta, evidentemente, mas um cineasta com missão, cujo chefe é Marechal Rondon, cuja tarefa é registrar expedições, a maior parte delas pelas matas, pelos rios, pelas selvas, pelas fronteiras, sempre a mostrar a presença do Estado do Brasil. Disso não se pode escapar, mas nisso não se pode ficar. Não há mais sentido histórico e ideológico, por exemplo, em se ver os filmes de Samuel Fueller e de Fritz Lang, para ficarmos em dois exemplos quase inquestionáveis, somente pelo prisma do sistema americano de produção. Não há mais condições de sustentação dos discursos americanófobos de George Sadoul em seus ataques a cineastas americanos cujo valor artístico é abafado por serem americanos. Luc Mollet havia respondido a isso quando cunhou a frase “a moral é uma questão de travelling”, oferecendo um caminho político no cinema que seja construído de maneira estética, não por conta do conteúdo e da origem do dinheiro. Quando se lida com um artista, com uma arte, o materialismo não dá conta de tudo. É preciso lidar com a sensibilidade, com os efeitos de procedimentos formais, que escapam de pré-determinações fáceis.

Mas não caiamos no caminho avesso, o de um esteticismo rompido com a vida, com a sociedade, com as forças mobilizadoras da produção. Nenhuma arte ou artista está blindado contra a força de seu mundo. Não precisa, por isso, ser reflexo dele. Pode estar em relação a ele, sem confirmá-lo completamente, em contrafluxo de seu contexto. Thomaz Reis, em sua condição de major, é um olho estatizado. Dado objetivo. Filma em nome de uma força pública e institucional. Outra afirmação objetiva. Mas deixará por isso de ser um cineasta? Essa questão terá de ser levada adiante com algum nível de subjetividade.

Afirma Paulo Menezes em Major Reis e a Constituição do Brasil enquanto Nação (em Horizontes Antropológicos, volume 14, n 29, Porto Alegre), como explicita o título, que a visualidade de Reis está a serviço de uma nação a construir. Ele pensa especificamente em Ao Redor do Brasil: Aspectos do Interior e das Fronteiras (1932), que soma imagens de vários filmes de Reis, com concentração destacada em interações com nativos. Menezes compara o desafio de Reis, em seu esforço de mostrar uma nação com precariedades como uma nação potente e moderna, ao desafio de Debret, que, na pintura, tentou o mesmo com a família real portuguesa no Brasil. Omitir o atraso e valorizar o progresso. O então recente estágio republicano, além da estatística de 80% da população habitando o campo nos anos 30 do século 20, carecia de legitimação e credibilidade, se a idéia era afirmar ideais positivistas. Incorporar todos os brasileiros, inclusive os índios e fronteiriços, era uma estratégia necessária, via política identitária composta de diferenças apaziguadas. Para tornar os nativos parte da nação, porém, era preciso civilizá-los antes. E registrar esse processo de civilização.

Menezes destaca um momento de Ao Redor do Brasil, no qual, quando “ensinado” a comer “direito”, um índio recusa o procedimento da cultura branca civilizatória. Estamos diante de um instante que, por trazer uma situação não enquadrável na proposta missionária, realça a força do acontecimento em si, de rebeldia, não da prática de um projeto político, grosso modo baseado em uma propaganda enganosa em alguma medida. Em outro momento aproximado, quando os nativos são “medidos” pelos expedicionários, uma índia demonstra resistência, indispondo-se com o papel de cobaia. Há nessas imagens uma energia emanada daquele que, se não reage com violência, ao menos boicota o apaziguamento e faz cara feia por ter de lidar com os invasores. Não é o que vê Menezes. Cenas como essas são funcionais, para ele, não exatamente registros de rebeldia. Porque esses índios resistentes seriam colocados ali como parte de uma infância da civilização a ser colocada como parâmetro para eles se tornarem parte do Brasil. Antes de serem brasileiros, precisam ser pacíficos, condição da cidadania. Nesses momentos de recusa, eles legitimariam o projeto de Rondon, com sua embalagem educacional. Precisam ser educados nos bons modos. Visão sem sutilezas. Porque se essa é leitura política, seja do pesquisador, seja de Reis, a experiência na imagem é outra: de resistência, aos nossos olhos de hoje

Bons modos é um termo importante para não perdermos de vista quando se pensa em Thomaz Reis. Já se escreveu com razoável desenvoltura sobre a herança pictórica e fotográfica dos enquadramentos do cineasta (sim, cineasta, insistamos), tendo sido comparados às fotos de Peter Henry Emerson, para ficar em um exemplo. Ele e seu contemporâneo, Silvino Santos, foram a Europa estudar técnicas de emulsão, de modo a adaptarem o material e os equipamentos às condições do interior brasileiro. Reis começou na fotografia e Santos na pintura. Reis se definia como “expedicionário-artista”, como se vê em um relatório de 1924, publicado no excelente catálogo (em sua simplicidade) da Jornada do Cinema Silencioso (de responsabilidade de Carlos Roberto de Souza e Remier Lion). Nesse mesmo relatório, ele lamenta a pressa das filmagens, por considerá-la ameaça às ambições artísticas, tendo em vista a impossibilidade de planejamento. Preocupações de cineasta e não de um militar. Mas essa pressa apenas valorizará o seu olhar.

Reis e a história do cinema brasileiro

Um artista sem uma arte, porque, para mal entendedor, seus filmes são só propagandas. O cineasta emprega suas habilidades para a publicidade das ações de Rondon, com exibições dos filmes no Rio e em São Paulo, e essa publicidade parece ter engolido seus méritos cinematográficos. Afirma Rosana Elisa Catelli, em mais um viés histórico:

Para um público ávido por imagens, curioso a respeito do sertão brasileiro, os filmes de Thomaz Reis lotavam as salas e proporcionavam um grande “marketing” da Comissão. Na perspectiva nacionalista da comissão, os filmes e as fotografias tiveram grande importância na criação de um imaginário coletivo em torno do tipo nacional, do sertão e dos povos indígenas.
(A Comissão Rondon e a Construção da Imagem do Interior do Brasil, em Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria, volume 10, n 17, janeiro/junho de 2007).

E nossos historiadores e críticos de cinema? Jean-Claude Bernardet sequer o menciona em CinemaBrasileiro: Proposta para uma História e Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro. Em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento, Paulo Emilio Salles Gomes, quando desenvolve a periodização de 1912 a 1922 e de 1922 a 1933, centra em Antonio Leal, Luis de Barros, José Medina, Humberto Mauro e Antonio Tibiriça, entre outros, sem também incluir Thomaz Reis. Alex Vianny deixa-o na invisibilidade em Introdução ao Cinema Brasileiro. Cuidado maior, mas não expressivo, explicável pela própria evolução da historiografia do cinema brasileiro, mas também pela rapidez dessa nova historiografia em suas avaliações, tiveram Patricia Monte-Mor em “Tendências do Documentário Etnográfico” (em Documentário no Brasil) e Amir Labaki em Introdução ao Documentário Brasileiro. Justiça tímida. Patricia Monte-Mor coloca-o como o primeiro documentarista etnográfico, parte da Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso e Amazonas, a Comissão Rondon, para a qual trabalhou entre 1912 e 1938, com “produções fílmicas bem cuidadas, consideradas expecionais para a época”. Em seu artigo, de qualquer forma, Reis ocupa menos de três páginas.

Os elogios e o espaço dedicado ao cineasta são menos econômicos quando feitos por Pierre Jordan em Primeiros Contatos, Primeiros Olhares (em Cadernos de Antropologia e Imagem, n1, 1995), para quem o cineasta realiza o primeiro filme etnográfico verdadeiro em Rituais e Festas Bororo (1917), utilizando todas as potencialidades que lhe oferece o tipo de material que dispõe. “Ele escreve com a câmera”, afirma Jordan. Se é inevitável aproximações entre Silvino Santos e Thomaz Reis, por terem sido contemporâneos e se embrenhado pela Amazônia, e se há quem considere Santos um esteta e Reis um etnográfico, como Hilda Machado (em Cinema de Ficção no Brasil, revista Alceu, volume 8, n 15), talvez seja necessário dar alguma autonomia a Reis.

Olhar de cinema

O começo é mais comentado que realmente conhecido em nossos dias. Seu primeiro filme, Sertões de Mato Grosso (1914), hoje perdido (situação de outras produções, como Expedição Roosevelt ao Mato Grosso/1915, De Santa Vruz/1917, Indústria de Borracha em Minas Gerais e no Amazonas/1917, Inspeção ao Nordeste/1922 e Operações de Guerra/1926, segundo Amir Labaki), é famoso pelo ufanismo. Há nele elogios superlativos a “grandiosidade da natureza nacional”, símbolo e evidência da superioridade brasileira. Mas bastaram três anos para Reis realizar Rituais e Festas Bororô, visto na Jornada do Cinema Silencioso: um petardo cinematográfico com 92 anos de idade, talvez não apesar de sua antiguidade e, sim, justamente, por conta de sua vinculação ao momento cinematográfico de sua origem. Uma vinculação não à frente do tempo, mas no coração de seu presente histórico (em sua modernidade), e ainda potente em nossos dias.

O cinema no mundo ainda estava ensaiando uma gramática narrativa, com as mudanças de escalas de planos e distâncias focais, com o aperfeiçoamento progressivo do raccord de olhar, quando o cineasta “oficial” filma os Bororo com um notável desejo de equilíbrio nos planos e nos cortes. Ok: não podemos fazer a comparação com os filmes de ficção de então, nem brasileiros, nem estrangeiros, mas podemos lembrar que Robert Flaherty ainda não havia realizado Nanook (1922), a referência mais óbvia e constante quando se fala em Reis. Se podemos reproduzir essa analogia, é mais saudável salientar as distâncias. Flaherty teve tempo de rodar duas vezes suas imagens narrativizadas e, se emprega com razoável desenvoltura o beabá da cartilha da escola Griffith de narrativa cinematográfica, impõe uma camisa de força aos esquimós, pois solicita deles um papel a cumprir.

Ao contato com as imagens dos Bororo por Thomaz Reis, vemos como, em 1917, elas nos parecem mais modernas e mais vivas, se a comparação for com Nanook, paradoxalmente, por estarem ainda embebidas da dinâmica da trupe de cinegrafistas de Louis Lumière. Nenhum espanto, na verdade, se concordarmos com a hipótese de que, antes de caminhar para a organização clássica, o cinema era mais moderno em sua oferta de imagens. A diferença é que, em 1917, Reis podia encadear os planos, estender sua visão de cineasta pela continuidade dos quadros, alterar os pontos de vistas.

Ponto de vista que é expressão chave no caso de Festas e Rituais Bororô. E é chave também para parte dos filmes dos Lumière. Se tomarmos com alguma liberdade interpretativa a analogia de Jacques Aumont (em O Olho Interminável) entre os inventores do cinematográfo e os pintores impressionistas a antecedê-los em poucos anos, podemos especular se a analogia não poderia ser estendida a Reis sem deixarmos de levar em conta os contextos distintos. Apoiando-se em uma frase de Jean-Pierre Leàud em A Chinesa, de Jean-Luc Godard, segunda a qual Lumière era o último dos impressionistas, Aumont aproxima os homens da primeira câmera utilizável e os dos pincéis velozes pela submissão aos aspectos contingenciais de seus momentos de realização. Nos dois casos, lidavam com o efêmero a ser captado, quase de improviso. Na pintura impressionista, por conta da relação entre velocidade das pinceladas e das mudanças atmosféricas. No cinematógrafo, por conta da ausência de um visor para enquadrar e dos poucos segundos de filme para rodar em continuidade de tempo.

Essa dinâmica de um “ao vivo” sem esboço, sem preparação, mais próximo da noção de estudo nas artes plásticas (primeira impressão diante de um motivo), valoriza o ponto de vista de quem pinta e de quem filma, sem se omitir o lugar de quem vê o que está sendo colocado em quadro. O pintor e o cinegrafista deixam de apenas registrar o visível diante dos olhos para estar em relação a ele e colocá-lo em relação ao olhar. Para Aumont, nos filmes de Lumière, ou ao menos em parte deles (os mais famosos), quem filma e quem é filmado interagem. Porque essa impressão de ao vivo acentua um caráter de “eu estive ali naquele momento”, como escreveu Roland Barthes sobre a fotografia (“aquilo foi”), mas com uma carga – no caso da imagem em movimento e transbordante (centrípeta) de Louis Lumière – de presentificação do passado eternizado enquanto dura a matéria cinematográfica.

O cinema, nas visões de Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub e Serge Daney, é conjugado no presente. Aquilo que foi (da fotografia) “continua sendo” (no cinema). É esse o efeito ao contato com os Bororo filmados por Reis. Eles parecem estar ali à nossa frente, em relação à câmera, que está em relação a eles também. Em dado momento, uma fila de índios, em movimentos coreografados de quem faz aquilo por tradição, de geração em geração, transborda o enquadramento. Reis movimenta suavemente a câmera para colocar todos em quadro ou dar aos fora de quadro a possibilidade de estar dentro. Os nativos respondem em outros momentos, quando, diante da câmera, agem em relação a ela de diferentes maneiras. Está em jogo, tanto quanto a afirmação de uma nação como comunidade de pertencimento supostamente compartilhável como noção (viés histórico), a imagem do “outro”.

E como esse outro é filmado diante desse projeto de propaganda de uma modernidade ainda a vir? Ora como participante, ora como resistente. Alguém mostra o peixe pescado para a câmera, estabelecendo, entre quem filma e é filmado, uma relação explícita. Não importa nisso se o índio atende uma solicitação de quem está atrás da câmera, ou se mostra o peixe por decisão própria, porque em quaisquer dos casos o importante é estar em relação com o aparato e com quem o controla. Atendendo o pedido, ou fazendo o gesto sem solicitação, o índio se exibe. Em outros filmes, há resistência, pela forma de encarar a câmera como se faz a um intruso ameaçador, diante do qual não se baixa o olhar porque não se pode mostrar algum grau de consentimento.

Não importa também, nesses casos, se está certo Paulo Menezes, citado no alto do texto, quando afirma que as recusas são, também elas, parte do projeto civilizatório de Rondon, porque nos mostrariam a necessidade de amansar os selvagens para torná-los brasileiros pacíficos e cordatos. Importa mais a força do registro, em si mesmo, em seu fenômeno, que sua submissão a um projeto. E isso não significa ignorar o projeto, mas valorizar a permanência de uma imagem, sua capacidade de superar seus contextos de realização, sem abrir mão do efeito de presença da realização. Que o leitor possa desculpar a insistência e a repetição dos argumentos, mas, quando lidamos com a insistência e a repetição de argumentos alheios, talvez seja necessário martelar na contramão com a mesma dinâmica de mantra discursivo. É uma estratégia pensada, não uma distração. Pelo contrário. É concentração, a tração no centro do debate, não sua dispersão.

Vemos o rigor de composição do quadro com passagens harmônicas entre planos. Não está em questão o valor desse rigor e dessas articulações, mas a preocupação com essa noção de impecabilidade, dentro dos limites de realização e possibilidades, que nos coloca diante de uma busca por uma imagem agradável, com sua dose de beleza encontrada na interferência do homem e não nas coisas em si mesmas. Porque o progresso e a civilização buscados pelos expedicionários solicitavam uma imagem bem emoldurada. Vemos na própria linguagem de Reis a ideologia a serviço da qual empunha sua câmera. Quando abre o plano diante da paisagem, não parece haver apenas encantamento com a natureza, mas a procura por um encanto dessa natureza em plano aberto. Não há louvação visual e romântica de nossos estados puros, mas uma procura por uma construção de uma imagem estética e política a um só tempo. A moral é uma questão de travelling. Um projeto de nação, na imagem, é uma questão de enquadramento.

Não é o elogio do natural, mas o auto-elogio do olhar, da arte de uma expressão em imagens. Esse embelezamento do quadro (obra do homem) também é parte da civilização propagandeada. Mas é acima de tudo trabalho de uma construção visual praticado por um cineasta, porque cineastas pensam sua imagem em vez apenas de reproduzi-la a partir de modelos (como fazem os artesãos). Essa é a diferença entre um cineasta e um cinegrafista. Não basta olhar. É preciso fazer algo com o olhar. Nesse caso, um olhar com uma missão. Mas uma missão que, em 2009, quando se apagam as luzes e a iluminação está na tela, torna-se coadjuvante diante do cinema. Thomaz Reis, major por circunstância, é cineasta por opção. Que assim possa começar a ser visto, nessa condição de homem com a câmera, não apenas na circunstância de oficial da República.

Setembro de 2009

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