in loco - mostra de tiradentes 2007
Primeiro dia: adesão ao imprevisto por
Francis Vogner dos Reis
Segundo o rapaz da
recepção na pensão em que está instalada a imprensa, não chovia em Tiradentes
desde o dia 01 de janeiro, e ela (a chuva) deixaria para aparecer hoje, 18 de
janeiro, na abertura da 11ª Mostra de Cinema de Tiradentes.Minas Gerais é assim:
calor, sucedido de chuva, seguido de mormaço e chuva novamente, e na impossibilidade
de lutar contra a natureza, a Mostra integra o imprevisível da natureza. Chuva
rápida, garoa, vento e temporal, fenômenos que impõem sua presença – inconstantes
e acidentadas – na Mostra de Cinema de Tiradentes.Como
a mostra não possui um auditório, um palácio do festival, nem mesmo uma sala de
exibição convencional, os filmes são exibidos na praça (Cine Praça) ou em uma
grande sala de cinema montada especialmente para a Mostra (Cine Tenda), utilizada
após a última sessão do dia (que normalmente termina após a meia-noite) para a
exibição dos filmes da praça, caso a sessão ao ar livre tenha sido cancelada em
função da chuva. O improviso em Tiradentes não é uma fatalidade, mas algo levemente
controlado. O imprevisto é comum. A
abertura da mostra com a homenagem à atriz Rosanne Mulholland e ao ator João Miguel,
deixou clara uma coisa em se tratando de cinema brasileiro: os grandes atores
são aqueles que sabem se integrar ao projeto dramático dos diretores (se eles
os têm, é claro) e não flutuar soberanamente acima do filme, não usá-lo como veículo
para exercitar a vaidade e criar uma “persona” a fórceps. O cinema brasileiro,
como sabemos, está repleto disso. João Miguel e Rosanne Mulholland são raras exceções,
pois, a cada filme, com maior ou menor qualidade de desempenho, ambos ainda imprimem
uma personalidade aos papéis que se beneficiam da “escuta” e da compreensão dos
diferentes projetos, de diferentes diretores. Por isso, é importante, ao lembrarmos
desses atores e atrizes, nos lembramos dos filmes. São inseparáveis. A homenagem
foi seguida da exibição do filme Falsa Loura, de Carlos Reichenbach, quando
a chuva, enfim, caiu torrencial. *** Falsa
Loura, de Carlos Reichenbach (Brasil, 2007) - Filme de Abertura O
cinema moderno brasileiro é reconhecido, sobretudo, por uma relação “preguiçosa”
da câmera com o que ela filma. Isso não é de maneira nenhuma uma observação negativa
(apesar de algumas pessoas assim considerarem), preguiça não quer dizer exatamente
que o cinema brasileiro é desleixado. David Neves entendeu isso como uma característica
fundamental da feitura de seus filmes, nos quais, aparentemente, o diretor intervém
discretamente no objeto filmado. As coisas acontecem e a câmera está lá para registrar,
e ela (a câmera) se serve desse efeito da realidade. O Cinema Novo, por exemplo,
acreditava nisso não só como elemento de estilo, mas como ética. Já
Carlos Reichenbach faz justamente o contrário: é evidente que ele “desenha” seu
filme com a câmera, que suas imagens são realizadas a partir de uma série de possibilidades
de movimento, modulação do espaço e reconhecimento dos corpos. Movimento este
calculado, antecipadamente desejado. Mas ele está mais para Samuel Fuller do que
para Brian DePalma, por exemplo, porque antes de ser uma postura estética que
visa trabalhar um dispositivo que se questiona sobre onde está a verdade em meio
a imagens falsas em um savoir faire impecável (DePalma, Argento), ele acredita
que construir uma cena é não deixar de lado o acidente, o imprevisível. O filme
se faz com a câmera de um jeito até mesmo mimético, mas sempre um tanto imperfeito
e às vezes acidentado. Como na primeira cena, onde vemos duas garotas dançando.
A câmera, em um leve movimento de travelling lateral, as acompanha, mas muitas
vezes também as perde de vista. Isso é fundamental no cinema
de Reichenbach. Não é coisa nova, mas o que isso quer (e pode) dizer hoje? Carlos
Reichenbach não fez diferente em nenhum de seus filmes mais recentes, mas Falsa
Loura adere abertamente a esses elementos de um modo muito mais auto-referencial,
algo que não víamos em sua plenitude e vigor desde Alma Corsária. Por isso
parafrasear – ou, mais literalmente, recitar – Sócrates e João Escoto Erígena
(teólogo irlandês do século nove) como possibilidade de comentário sobre a condição
da personagem (uma força da natureza e, sobretudo, desesperada). Para construir
esse universo, ele opta pela heroína que é ao mesmo tempo vítima das circunstâncias
e dona da situação. Ele sempre vai compreendê-las como mulheres à beira do abismo.
Trágicas e ao mesmo tempo reativas. Como outras heroínas (Lílian M, Aurélia, Dália)
elas reagem: xingam, batem, choram e tentam não se deixar enquadrar. Assim,
Silmara (Rosanne Mulholland) é fascinante e contraditória, revoltada e doce, intensa
e suave. Até mesmo a sua estupidez faz parte da sua política da amizade. Nesse
sentido, ela é sua personagem mais fascinante, e se o filme parece deixar pelo
caminho alguns eixos que deu início (a personagem de Djin, de Léo Áquila), é porque
a adesão irrestrita à personagem faz com que esses vários elementos orbitem em
torno dela. Se o filme perde ao deixar de lado alguns eixos dramáticos que abriu
(o que não aconteceu em Anjos do Arrabalde, dramaticamente irretocável),
ele ganha na figura da protagonista. Reichenbach nunca olhou uma protagonista
tão de perto quanto a Silmara de Rosanne Mulholland, atriz que acredita no corpo.
A erotização da personagem de Rosanne é nada mais do que um estado de generosidade,
de liberdade, mesmo que ela tenha de lidar com os paradoxos dessa liberdade: o
abuso dessa liberdade pela boçalidade anacrônica dos personagens masculinos. Falsa
Loura seria uma versão de Lílian M - Relatório Confidencial via o melodrama
de Valerio Zurlini, referência constante do diretor. Neste
retorno de Carlos Reichenbach a uma pegada mais auto-referencial, vemos um cineasta
mais arriscado, que acredita que o cinema “não pode ser” sem que ele se posicione,
como uma expressão irrestrita do universo de seu diretor - universo esse que vai
lidar com extremos, que vai entender o peso da condição e das escolhas dos personagens,
mas, ao mesmo tempo, que nunca vai deixar de ser generoso, nunca vai deixar de
entender, em uma atitude zen mesmo, que tudo é transitório. Por isso sua
protagonista, a falsa loura Silmara, tem uma postura urgente e intensa. Janeiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|