in loco - mostra de tiradentes 2009
Nono dia: Poética esquizofrenia
por Rodrigo de Oliveira

Estrada Real da Cachaça, de Pedro Urano

Só nos créditos finais de Estrada Real da Cachaça o projeto do filme parece se encontrar finalmente com o tom e o caráter que, ao longo de toda a obra, se escondera por trás da carapuça em que se transformou a tal da “poesia” no cinema. Surge de repente um mapa cartográfico do antigo Caminho do Ouro, que identifica cidades visitadas e entrevistados mil (literalmente, mil), com o samba “Eu Bebo Sim” tocando ao fundo. É dessa mistura de um conteúdo informativo constantemente ignorado, mas sempre presente como um fantasma careta e indispensável, e a aproximação invariavelmente jocosa e festiva do tema que o caminho do próprio filme vai se fazendo – com o mesmo nível de atenção de uma criança que não pode ver nada à sua frente que logo quer provar (e provar tudo, seja terra, sabão ou uns personagens curiosos). É um desses filmes que torna a provocação de Serge Daney de uma justeza irrepreensível: se “a ficção é colocar-se a si mesmo no centro do mundo para contar uma história, enquanto o documentário é ir aos confins da terra para evitar contá-la”, é lá nos confins que, pelo bem do desmazelo ficcional, Estrada Real se esconde mais confortavelmente.

Que não se deseja uma aproximação tradicional do tema da cachaça, e que a via escolhida é a dinâmica das “associações líricas”, digamos, isto está claro desde o começo. Mas interessa é saber o que Estrada Real faz com tudo isso que é, e nesse confronto sobra pouco ou quase nada. Começamos com ruídos e uma câmera subjetiva que percorre, ao nível do chão, um matagal qualquer – mas subjetiva de quem? Isso, nunca saberemos, uma vez que o dado ali é uma figura de estilo, nunca uma postura e um olhar sobre o mundo como ele se apresenta diante da lente. O caminho é temerário (a trilha sonora nos diz isso exaustivamente), e dá num despacho de macumba – primeira inserção da cachaça num contexto social, onde é fartamente utilizada. Rapidamente, abandonaremos a matéria física, tangível, pelo efeito psicológico: com diversos cortes dentro de um mesmo plano, um close da mãe-de-santo incorporada num Exú, saberemos que é dessa cachaça, a cachaça como potência expressiva e de sublevação do espírito, que Pedro Urano está falando.

Mas esta é uma plataforma de superfícies, que atinge o fenômeno pelas pernas sem nunca subir exatamente à cabeça. É assim que Estrada Real arma, em torno da cachaça, deste percurso histórico definido pela corrida do ouro e dos personagens que ajudariam a implicar uma coisa na outra, uma extensa camada de sons e imagens que se combinam quase aleatoriamente. Frases soltas sobre a “natureza” do caminho, seu caráter pernicioso, demoníaco até, e algumas platitudes sobre as qualidades da bebida (e aí o fato dos especialistas ou dos simples beberrões nunca serem identificados não significa que a necessidade de balizamento na ciência e na verdade popular não esteja lá) são misturadas num todo sonoro que confunde potência com barulho, significado com estridência. Esta gente, estas histórias, “isso tudo é nosso”, e por isso mesmo serão radicalmente igualados sob a benção complacente do samba nos créditos finais: pede-se especialidade e diferença de cada uma das situações apenas para que, mais adiante, seja possível negar estes seus valores em nome do painel poético totalizante que Pedro Urano põe em curso.

E tudo o que o tal caminho atribulado de Estrada Real vai nos provando é que, bem ao contrário, o interesse de todas aquelas imagens está justamente naquilo que é apenas delas, que se indispõe com a vontade globalizante e exige particularidade e cuidado. É assim com o momento mais valioso do filme, quando chegamos à cidade de Morro Vermelho para testemunhar um ritual católico com os dois pés fincados na profanação: um grupo de fiéis não apenas lava com cachaça as imagens barrocas dos apóstolos (e a de Cristo ressurrecto, sobretudo), como também faz da bebida que respinga das imagens uma espécie de água santa com a qual se benzem. O espetáculo está pronto, serve bem aos olhos tanto quanto está preenchido de uma série de sentidos que o ultrapassam. Mas é também pelo viés mais tímido, o da matéria plástica pura, que Estrada Real observará o sem-número de alcoólatras crônicos que cruzam seu caminho. O tom “alegrinho” de umas comadres cachaceiras, que lavam roupa e repetem pequenos jograis sobre a bebida diretamente para a câmera se associará a imagens em primeiro plano de rostos absolutamente destruídos pela patologia, como se fossem manifestações da mesma natureza. Mas a própria idéia de que todo o terror e a suspensão – que o filme tão grosseiramente tenta aplicar ao trajeto narrativo e geográfico de sua construção – surjam de fato materializados na tela, configurados num drama real de conseqüências reais, parece escapar ao projeto “lírico-apaziguador” de Pedro Urano.

Um dos homens diz que “pinga faz mal à pessoa”, depois de tomar mais um gole e ser filmado com os olhos completamente desfigurados pelo excesso, e mais adiante, pedra tabular da rejeição a que Estrada Real nos impele, veremos uma montagem “simbólica” de um velho negro na mesma posição em uma dúzia de tempos e espaços diferentes: copo meio cheio, já virado na boca, até que o gole se complete. É uma questão moral, evidentemente, mas não de simples patrulhamento. Os personagens dessa natureza, loucos, bêbados, marginais, têm um histórico de representações que os atravessa e os condiciona, mas é preciso ter alguma consciência de que há ali um perigo, uma tensão, que lidar com esta gente é colocar-se um problema, e que os filmes precisam de um pouco mais de esforço e um pouco menos de picardia para torná-los minimamente inteiros na tela (não falamos nem de integridade, porque é da qualidade do marginal não tê-la, e isso pode ter efeitos fenomenais – lembrar da interrupção de uma cena no Bandido de Sganzerla por um morador de rua enfurecido). Derivativo e disperso, Estrada Real parece não conseguir chegar nem perto de nos dizer o porquê exatamente de filmar do jeito que filma. É tudo parte de uma grande celebração, afinal de contas – mas não há samba de breque ou animação computadorizada que nos diga o que de fato estamos comemorando.

Janeiro de 2009

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