in loco - mostra de tiradentes 2010
Segundo dia: Terra arrasada
por Fábio Andrade

Insolação, de Daniela Thomas e Felipe Hirsch; e
Cabeça a Prêmio
, de Marco Ricca


No primeiro texto desta cobertura, eu usei o título de “apocalipse em doçura”. Curiosamente, parte dessa sensação é levada adiante por dois dos longas exibidos neste segundo dia de Mostra. Mesmo que em graus diferentes de estilização, em ambos os filmes somos instalados em um cenário pós-apocalíptico, onde o mundo edificado (seja ele físico ou moral) aparece arrasado, e as pessoas que restaram têm como missão de sobrevivência descobrir o que permaneceu de essencial, para então preservá-lo. O apocalipse vem, em parte, daquela mesma sensação de “mal do século” que ronda Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, e a maior parte da produção cinematográfica mundial desde os cinemas novos (ou de suas crises): a distopia, a desconexão, a errância torpe que marca a obra de sujeitos tão essenciais quanto Antonioni, Terence Malick e Robert Bresson. Valorizemos, porém, os prefixos: ao serem filmes pós-apocalípticos, existe, enfim, a percepção de que os diagnósticos só existem para que se possa buscar alguma espécie de cura. Começamos a nos livrar de Profissão: Repórter, e a movimentação ininterrupta passa a ter não exatamente um foco, mas ao menos a consciência de que a fratura precisa ser remendada. Os caminhos para essa descoberta (e o plural, aqui, é mais importante pela recorrência da estrutura em multiplot) são os mais diversos, e, mesmo que não exatamente filmes que se complementem, Insolação (foto acima) e Cabeça a Prêmio se unem justamente no que eles têm de diferente.

* * *

A se ver por Insolação, Antonioni continua uma referência incontornável. Um dos principais conflitos do filme é, como em A Noite ou A Aventura, o embate entre figura e fundo, personagem e entorno, homem e cidade, as curvas do rosto e a dureza das linhas frias da arquitetura modernista. O sujeito é engolido pelo espaço na predominância dos planos gerais, que aqui se tornam ainda mais amplos pelo formato cinemascope. O apocalipse vem da arquitetura (lembremos da montagem de rostos e fachadas de prédios nos filmes de Antonioni, em uma clara relação de causa e efeito entre a arquitetura e a condição emocional daquelas pessoas), e se manifesta sobre ela: estão lá os prédios semi demolidos, as piscinas de lodo, os tapumes e os escombros que se acumulam em toda parte, como uma manifestação física da dissolução emocional daquelas personagens.

Mas os espaços demolidos se tornam, também, espaços a serem ocupados – como fica claro logo no começo, com as interrupções do monólogo de Paulo José pelo segurança, que diz que ele não poderá mais usar aquele espaço para se comunicar com o público. Esse conflito faz com que Insolação parta de Antonioni, mas chegue – pela ambientação – ao seu herdeiro mais direto no cinema atual: Tsai Ming-liang. Pois Felipe Hirsch e Daniela Thomas usam, aqui, diversas das mesmas estratégias de Tsai em Que Horas São Aí?, e principalmente O Sabor da Melancia (há, inclusive, um plano em uma ponte que lembra muito as composições de passarela desse filme). A andança zumbificada; o abraço ao simbolismo (os sintomas de insolação como metáfora clara para a chegada da paixão); as composições de extraordinária precisão geométrica; os espaços vazios e, principalmente, a oposição entre retas e círculos como tradução visual da dinâmica entre homens e mulheres – são todos elementos tirados do cinema de Tsai que, aqui, ganham um novo índice: o gosto pelo texto, pela fala como sequência de punchlines (algo coerente a um filme composto de esquetes, muitas vezes em plano único), pela possibilidade de se fazer poesia no silêncio do caos. Hirsch e Thomas têm uma saudável desinibição nessa abordagem que prefere o risco da afetação à omissão, e que por vezes gera frases ou diálogos realmente preciosos.

Todo esse rigor e entrega, porém, esbarram nos mesmos limites que a dupla já mostrava no teatro. Embora eles demonstrem um enorme talento de composição e de significação visual, além da fé louvável na escritura do texto, há também uma enorme dificuldade em se encontrar o tom dos atores para além de sua presença pantomímica (lembremos, aqui, de Avenida Dropsie). Não temos nem naturalização bastante para gerar uma estranheza mais forte nessa impostação, nem estilização suficiente para que essa estranheza seja absorvida pelo tom da própria encenação. Com isso, Insolação é um filme ironicamente glacial, que se perde um pouco no terreno pantanoso da palavra, flutuando no desconforto do entre-registros que, ao mesmo tempo em que parece buscar para si um terreno particularíssimo (é difícil pensar em filmes que lhe sejam realmente próximos na produção brasileira recente), é ainda travado por um claro receio de levar seu universo aos níveis de estilização que ele exige – algo até certo ponto natural em estréias, e que se percebe, por exemplo, nos primeiros filmes de Wes Anderson e Tim Burton.

Por conta disso, Insolação se sustenta muito na maneira como os diretores filmam a cidade, com predominância da frontalidade. O problema é que, em um filme que luta justamente pela preservação do homem frente à cidade derrubada, o fascínio por essa mesma geografia faz com que a briga seja perdida logo de partida. Se existe uma força maior na paixão do garoto Vladimir (Antonio Medeiros) por Liuba (Leandra Leal), é em grande medida por esta trama se dar principalmente em interiores que, mesmo em ruínas, nunca ganham em força expressiva dos rostos e gestos dos atores. Insolação é um filme de intenções admiráveis; um filme que compra as brigas certas, mas que parece perder quase todas elas. Ainda assim, é justamente a estranheza da frontalidade com que os diretores compram essas brigas que gera um inegável sopro de frescor – mesmo que ele seja de fato gelado e um tanto funério.

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Cabeça a Prêmio não poderia gerar impressões mais distantes. Aqui, a sensação apocalíptica é mais naturalista mas, curiosamente, ainda mais alegórica: Marco Ricca filma, nesta estréia na direção, a morte de uma família, mas também de um país, de uma classe social, de uma postura moral em relação ao mundo. As personagens do filme parecem divididas entre o rompimento das relações passadas, e a possibilidade de atar laços para o futuro. O sentimento é de que um mundo vai-se embora, mas que já vai tarde; aos que sobram, permanece a chance de viver diferente. A diferença mais marcante em relação a Insolação está na medida do maior sucesso do filme de Marco Ricca: é sua dedicação irrestrita às personagens que vai determinar cada posicionamento de câmera, cada corte, cada curva de dramaturgia. Cabeça a Prêmio se apresenta com extrema fluidez, onde interessa muito menos pensar friamente sobre as operações que ele realiza (como no longa de Daniela Thomas e Felipe Hirsch), e mais se deixar levar pelas modulações de cada um dos atores, todos eles em momento especialíssimo.

Sentimo-nos sugados pelos destinos de personagens que são condenáveis por diversos aspectos, e isso só acontece pelo cuidado do diretor em fazer com que elas nos pareçam mais matizadas. Tomemos como exemplo a personagem de Fúlvio Stefanini: um chefão mafioso que compensa sua insegurança comendo tudo que vê pela frente; que parece se importar tanto com sua filha a ponto de isso produzir uma atmosfera levemente incestuosa; que trata seus funcionários com visível afeto (embora não se incomode em matar um deles quando os interesses se atravancam); que tem uma relação aparentemente morta com sua mulher, mas que ao mesmo tempo conserva um certo carinho, um notável senso de proteção (um mar de diferença, por exemplo, para o casal de pais de O Pântano, de Lucrecia Martel). Cada uma das personagens de Cabeça a Prêmio tem uma palheta igualmente larga, e aos atores cabe o enorme mérito de conciliar essas particularidades sem nunca percebê-las como conflitantes ou se aproximar da esquizofrenia.

Esse controle transparece em todos os aspectos do filme, o que faz de Cabeça a Prêmio um exemplar raro no cinema brasileiro onde o artesanato cinematográfico tem o esforço e a elegância de tentar se apagar (em grande medida, o fator primordial da produção de gênero mais tradicional). O resultado se aproxima muito mais de uma versão brasileira de Os Donos da Noite, de James Gray (no que cabe a inversão da relação familiar: da polícia, no filme de Gray, para a bandidagem), do que de uma atualização aguada dos primeiros filmes de Beto Brant. Para além das proximidades temáticas reais e inegáveis, Marco Ricca demonstra um domínio de encenação e de direção de atores mais firme do que o de Brant, em um desses casos nem tão raros assim em que o produto decorrente logo supera a matriz que lhe dá origem.

Janeiro de 2010

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