in loco - mostra de tiradentes 2011
Sétimo dia: Alguns
apontamentos e afirmações sobre política, liberdade e invenção
por Filipe Furtado
Os Residentes,
de Tiago Mata Machado (Brasil, 2010)
Para um filme que
merece uma crítica muito mais cuidadosa e criteriosa do que de
uma analise de meio de festival permite, segue uma série de apontamentos:
-
Os Residentes se constrói como uma série de blocos-desafios
para seus atores, eles próprios na sua maioria artistas. È uma
série de questões sobre como negociar sua presença no mundo. Não
poderia ser mais vital.
- Tudo em Os Residentes
gira em torno da representação e da autenticidade do corpo. Cada
novo bloco é um novo teste para buscar lidar com a primeira para
tentar afirmar o segundo. Armadilhas nem sempre superadas, mas
que o filme sempre encara com a cabeça erguida.
- É um filme que reconhece uma paisagem política
devastada, mas que enxerga uma necessidade de existir dentro dela.
Me parece, a principio, um dos, se não o mais, bem sucedido filme
político do cinema brasileiro recente justamente, por reconhecer
este estado das coisas e mesmo assim insistir em
existir. Não é um filme derrotado, mesmo que
sua estrutura freqüentemente sugerir o próprio apagamento. Seu
ato político esta impresso na película.
- Numa conversa com o Fábio Andrade após a sessão,
ele me sugeriu que o filme é constituído todo de planos conceitos
que se resolvem dentro de si mesmos até quando há um plano/contra-plano.
É uma extrapolação um tanto excessiva, mas que nos dá uma bela
chave para se aproximar do filme e deste jogo de blocos que Machado
vai aos poucos organizando.
-
Os Residentes se estrutura todo em função de uma seqüência
especifica, em que o casal que de certa forma acaba existindo
bem no centro da cédula de guerrilha do filme tem uma longa discussão
sobre a própria relação e a forma como se opera controle e poder
dentro dela. A primeira parte do filme existe para antecipá-la
e tudo que existe depois bifurca dela. A seqüência dura dezessete
minutos e ali, a despeito da discussão parecer menos relevante
do que outros trechos do filme, a política de Os Residentes
se afirma. È ali, no mais essencial e vital dos grupos – o casal
–, que todas as relações de poder se debatem. Eu diria se tratar
de um movimento essencial do cinema pós-1970 que poucas vezes
chegou ao cinema brasileiro com tanta força. Se não contasse com
mais nenhum momento de cinema legítimo, Os Residentes já
seria um filme incontornável só por este bloco. E vale dizer que
a conclusão à Henry Miller e a transferência do bigode confirma
que há uma fluidez prazerosa neste filme bem distante da aridez
que seus críticos e mesmo seu próprio cineasta parecem acreditar.
- No debate aqui em Tiradentes, Tiago Mata Machado
fez uma oposição geracional entre Os Residentes e Os
Monstros – a despeito dele não ser muito mais que meia dúzia
de anos mais velho que os Pretti e os Parente –; disse que seu
olhar pertencia a uma cinefilia godardiana e que o de Os Monstros
pertencia a uma cinefilia cassavetiana. Algo que muito me fascina
em Os Residentes
é justamente como, na verdade, ele junta estas duas idéias de
olhar e conjuga elas numa coisa só. Me parece um movimento político
essencial de se reconhecer que, para lidar hoje com uma série
de questões, é preciso sobrepor um olhar ao outro – que creio
ninguém havia feito ainda e que é responsável por boa parte desta
potência política que Os Residentes atinge.
* * *
Os Monstros,
de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti
(Brasil, 2011)
Os Monstros
parte de questões básicas: sua relação acabou, seu emprego é uma
merda, tu precisas encontrar alguém com quem consiga se expressar
à vontade. È um filme todo marcado por esta necessidade enorme
de conseguir se articular e expressar. Parte da graça, tanto de
Estrada para Ythaca como deste Os Monstros, é notar
como seus cineastas tateiam em meio a todo um universo de referências
cinematográficas que eles conhecem e dominam muito bem, para chegar
num material tão essencial. Os Monstros se mostra como
se Superbad encontrasse Pedro Costa, e saíssem para uma
noitada etílica. Sua emoção nasce desta necessidade dos seus cineastas
de buscarem num imaginário cinéfilo-intelectual que lhes fala
fundo, o necessário para afirmar este misto de dúvida e camaradagem.
Os Monstros,
muito mais do que Ythaca, é uma carta de afirmações. Um
filme assombrado pelo desejo de afirmar o que o ideal de cinema-vida
dos cineastas (no cinema deles é uma coisa só) significa. È um
filme inclusive muito melhor resolvido quando articula isto dentro
da imagem, em seqüências individuais, do que na narrativa em si. Da narrativa se retira
muito mais um gosto por deixar ela se descarrilar por vezes em
função de momentos específicos (os números musicais, as seqüências
na festa), este sentimento constante de precisar procurar um outro
para que o desejo de expressão se complete e as inquietações básicas
que precisam ser afirmadas para depois serem destronadas pela
câmera dos quatro diretores.
Tudo
aqui gira em torno desta necessidade de afirmar o autêntico. Não
é a toa que os próprios cineastas novamente se coloquem em cena:
para afirmar este desejo, é preciso primeiro afirmar a sua própria
presença no mundo. Os Monstros, assim como Ythaca,
é todo marcado por uma série de códigos de expressão muito próprios,
mas o mais importante deles é justamente a presença de cena de
Guto, Luiz, Pedro e Ricardo. São eles próprios agoniados (e deve
se dizer que por todo o prazer que está na tela trata-se de um
filme que traz consigo uma dor muito forte) por uma vontade de
expressão – algo que se revela ainda maior neste Os Monstros,
em que eles funcionam mais claramente como atores que não representam
necessariamente a si mesmos. Não há nada de egocêntrico neste
processo, só uma série de inquietações que exige esta presença
de cena.
Tudo isso culmina numa longa – 15 minutos – jam
session improvisada, na qual os Pretti tocam e os Parentes
operam o equipamento de gravação de som (de cinema, vale dizer).
Uma seqüência que caminha rumo ao esgotamento total, mas que paralelamente
afirma o tempo todo a autenticidade na presença daqueles quatro
corpos ali (e nisto o final da seqüência com os quatro exaustos
é essencial). De certa forma, é a arte (no caso, a música, mas
também o cinema) como desafogo para aquela série de questões básicas
que o filme levanta nos seus minutos iniciais. È um longo processo
da desarticulação completa, exposta nos momentos em que os personagens
tem que lidar com um outro (o dono do bar, as garotas na festa),
até uma articulação completa quando eles entram em sintonia no
seu número musical. Os Monstros é a purgação completa,
necessária para fazer este processo valer, para dar vazão esta
necessidade que tanto move seus cineastas.
* * *
Santos Dumont: Pré-Cineasta?,
de Carlos Adriano (Brasil, 2010)
Já
Santos Dumont: Pré Cineasta?, de Carlos Adriano vai direto
a fonte. È um ensaio apaixonado sobre cinema, liberdade e invenção
usando a figura de Santos Dumont e a idéia de que ele colaborou
para o desenvolvimento do cinema como guias. Sobre o filme, o
Eduardo Valente já deu conta muito bem aqui na revista num texto à época do festival do
Rio, mas vale destacar o cuidado e fluência com que a montagem
articula todas estas idéias, e sobretudo como diante da presença
constante da figura de Bernardo Vorobow, Santos Dumont: Pré
Cineasta?, acaba se aproximando de Os Monstros, já
que para Vorobow, também, cinema de invenção e vida se confundem
o tempo todo. Santos Dumont: Pré Cineasta? afirma todo
o poder de permanência deste cinema que tanto nos encanta.
Janeiro de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
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