in loco - cobertura dos festivais
Assalto à pureza
por Fábio Andrade
Chego em Tiradentes atrasado. Esse atraso é
circunstancial, uma vez que dois dias de festival já se
passaram, mas não só: este ano, Tiradentes está
apresentando, em grande maioria, filmes que já foram vistos
e que já motivaram outros textos na revista (e nesse sentido,
o atraso foi infeliz porque alguns filmes de muito interesse e
ainda inéditos nas páginas da Cinética foram
exibidos neste começo, como Billi Pig, Djalioh
e Hoje). Se a Cinética sempre teve como uma de suas
mais potentes inclinações a possibilidade de se
assumir revisionista; às revisões (mesmo que recentes)
parece-me mais cabível assumir aqui um tom dialógico
que, bem ou mal, é como estas reflexões começaram
a se organizar desde que cheguei por aqui. A cobertura filme a
filme já foi feita, na maioria dos casos, e de qualquer
jeito é pouco orgânica da maneira como os filmes
são experimentados num evento como Tiradentes.
Há algo, porém, que contribui com esse atraso e
esse revisionismo. Como recentemente mencionado em um editorial,
por questões pessoais passei a maior parte de 2011 sem
ver filmes brasileiros. Pra quem há muito está imerso
neste universo, essa breve distância traz à luz perspectivas
um tanto inesperadas sobre o festival e os filmes aqui exibidos.
Por vezes, estar atrasado é providencial. Em primeiro lugar,
para quem responde ao seu tempo tentando estabelecer uma mínima
impressão de História – mesmo que a abrangência
necessária em um festival interessado na possibilidade
do novo seja tão curta que talvez não mereça
maiúsculas – é tentador chegar a filmes como
As Hiper Mulheres e Girimunho embriagado por
uma lógica teleológica, que os define antes mesmo
que eles sejam vistos. A distância de "poder pensar
o que já foi dito" traz não um esfriamento,
mas por vezes uma possibilidade de deslocamento de eixo de olhar
que, ao menos nesse primeiro dia, se faz urgente.
Esse
deslocamento é importante, mas não tanto quanto
os filmes: se As Hiper Mulheres e Girimunho
solicitam abordagens diferentes, é porque são, de
fato, filmes que se impõem em suas diferenças. No
caso de As Hiper Mulheres, de Carlos Fausto, Leonardo
Sette e Takumã Kuikuro, o prazer proporcionado pelo filme
tem algo de extremamente básico (uma vez que está
na raiz primeira do cinema), mas em nada ingênuo: a maneira
como a câmera se coloca e organiza os elementos no quadro,
criando tramas de ritmos, cores, massas e movimentos que se reapresentam
e se reconfiguram continuamente. Isso acontece tanto dentro da
própria estrutura do filme – algo que parte do minimalismo
narrativo (uma doença que gera um fiapo de drama) e termina
na exuberância coreográfica – quanto dentro
de cada cena, em uma constante reorganização espacial
promovida pela câmera ou por quem é filmado.
As Hiper Mulheres tem, portanto, essa tensão essencial
entre a cena e a câmera, nesse dilema expressivo de um filme
sobre o universo indígena que se parece muito mais com
um filme de gênero norte-americano. Essa suposta contradição
é por si só desconcertante, mas mais ainda é
o que resulta dela, com planos surpreendentes em sua mise
en scène, alcançando beleza por vias insuspeitas.
Se há graça em As Hiper Mulheres, ela não
está na visão apaziguadora de que os índios,
imagine!, são gente como a gente, nem exatamente em seu
contrário (afinal, quem é gente exatamente como
eu?); mas justamente na batalha constante que existe entre a
mise en scène da própria ritualidade local
e a que o filme imprime a partir de seus próprios dados.
Embora exista uma simpatia natural em ver um filme que vai a uma
aldeia indígena não para contemplar uma realidade
supostamente distante ou para buscar o denominador comum que concilia
a igualdade na diferença, o mais interessante é
ver como as ferramentas de construção do próprio
cinema potencializam o sentimento que já se coloca diante
da câmera, harmonizando, pelo choque, quem filma e quem
é filmado. É algo que fica claro na leve panorâmica
que fecha o filme, passando a história de mãe para
a filha com um recurso que o cinema há muito estabeleceu
e que, aplicado com a devida justeza, não perde uma vírgula
em expressão.
Em
sua crítica a Girimunho, de Helvécio Marins
e Clarissa Campolina, aqui
na Cinética, Raul Arthuso pinça um trecho de
um texto meu sobre uma sessão da Semana dos Realizadores
em que foram exibidos Desassossego e O Mundo é
Belo. O texto originalpercebia ambos os filmes amarrados
a um contexto determinado, respondendo a aspirações
que os transformavam em algo como “resumos de época”.
No papel, Girimunho talvez pareça a expressão
máxima de um cinema pretendido por uma fatia de uma geração
do cinema brasileiro – da qual a Teia é nome decisivo
– que vinha sendo burilado por abordagens diferentes, mas
que buscavam aquilo que Arthuso define como “plenitude da
vida”, onde espaço e ser se amalgamam com a mesma
volatilidade com que o diretor se dilui na própria cena.
O problema é que Girimunho, filme onde nada é
pleno, nada tem a ver com isso.
Há, portanto, um certo automatismo que tende a subjugar
os filmes a seus contextos, assumindo tudo como um longo contínuo,
e a reaplicar visões de alguma forma cristalizadas que
pode fazer confundir a aparência com a coisa em si. Esse
processo é percalço inevitável do próprio
pensamento, mas justamente por isso é necessário
tentar evitá-lo. De fato, há um caldo ideológico
no qual o filme se insere que está presente em seu sentimento.
Mas o cinema não é só ideologia, e Girimunho,
esse tal “fim” para o qual as coisas supostamente
caminhavam, se organiza e se apresenta (duas coisas que dizem
muito mais respeito à arte do que a ideologia) de forma
absolutamente diversa do que compõe essa tal trajetória.
Ao apresentar o filme, o diretor Helvécio Marins solicitou
aos espectadores que deixassem de lado os conceitos e os preconceitos
para tentarem acompanhar uma história. Não deixa
de ser irônico, porém, que, apesar da utopia de pureza
que marca não só esta fala mas uma posição
comum no cinema brasileiro atual em relação ao mundo
e à arte, Girimunho seja um filme interessante
justamente pelo que há de deliberado e opaco em sua construção.
Em dado momento do filme, a câmera filma uma estrada através
do vidro de um automóvel. Mas mais do que mostrar a estrada,
ela se concentra no vidro sujo que está diante da câmera,
manchado pela passagem do tempo e pela poeira acumulada. A sujeira,
como os conceitos e os preconceitos, são parte do mundo,
e o filme, felizmente e à revelia da fala do diretor, se
alimenta delas.
Afinal, Girimunho é um filme de drama. Não
é um filme do valor da experiência bruta, mas justamente
da experiência produzida. Se as personagens interpretam
a si mesmas, se há uma indefinição de o quanto
o roteiro é solicitado pela realidade, se os espaços
visitados já não nos parecem “novos”,
se a abordagem dos planos gerais e estáticos e dos reflexos
e desfoques não rompe com um suposto estado de aparência
vigente, nada disso resume ou dá conta do filme. Os métodos
e procedimentos determinam resultados, mas não são
os resultados. Girimunho tem virtudes e problemas que
lhes são particulares e que, por isso mesmo, são
tão mais interessantes do que essa visão do filme
como uma mera peça em uma enorme engrenagem faz crer.
Uma das cenas mais fortes do filmede certa forma ilustra o que é a experiência de assisti-lo. Bastu, a senhora que protagoniza o filme, entra em uma canoa e, iluminada pelo resto de brilho dos fogos de artifício, rema para a escuridão. Quando a tela já está tomada pelo céu negro e a personagem já foi engolida pelo fundo do quadro, uma música toma a banda sonora enquanto um barco luminoso adentra o plano, ressignificando uma cena que já parecia, para todos os efeitos, acabada. A experiência de Girimunho é um pouco como isso: o filme demanda a disposição de repensar o que já parecia compreendido antes da inserção deliberada, nada natural, de um novo dado visual ou sonoro que muda o sentido do todo. O som determina os limites – o dentro e o fora de quadro, mas também o natural e o sobrenatural – em uma escoamento livre e constante entre as camadas ali conviventes, como a aparição de uma nova cena obriga a repensar a anterior, gerando um encadeamento que, para avançar, precisa sempre recuar. Nada mais apropriado para um filme que, justamente, sobrevive da convivência entre vivos e mortos, entre passado e presente, como o ser desencarnado que segue trabalhando em sua oficina.
Tudo isso, portanto, é questão de manipulação, não de mero registro. É expressivo também que a cena mais fraca do filme, e a que melhor expressa seus limites, é de caráter explicativo: avó e neto conversam enquanto caminham pela cidade, trazendo para o proscênio questões que eram tão mais interessantes quando misteriosamente (mas não cripticamente) indicadas – um óculos escuro, o barulho de ferramentas trabalhando, um belo revólver. Não é à toa que o drama do barulho das ferramentas pouco depois será melhor resolvido, pois não justificado, quando Bastu recolhe as ferramentas do falecido marido e conversa com a memória do morto. Os problemas que fazem de Girimunho um filme imperfeito são, portanto, de ordem dramatúrgica, quando recorre a soluções simplórias e apressadas que destoam em um amarrado bastante complexo. As imperfeições de Girimunho não são de projeto, mas de realização, o que já coloca em um lugar absolutamente distante desse tal “espírito de geração”, ou mesmo da produção pregressa da Teia e dos próprios realizadores. Imperfeições à parte, Girimunho é, sobretudo, um filme dissonante. E, deixando a história e a geração de lado, é um filme que consegue se manter vivo e surpreendente a maior parte do tempo, mesmo quando sua aparência mais epidérmica faz crer o contrário.
Janeiro de 2011
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