in loco - cobertura dos festivais
Do concreto
por Fábio Andrade

Há um risco grande de Balança Mas Não Cai se tornar refém de sua aparente indefinição. Afinal, em seus pouco mais de 70 minutos, há um desaguamento de registros vários que, ali, parecem indiferentes, embora diferentes entre si, como se tudo fossem e nada fossem ao mesmo tempo. No dia seguinte, o debate seguiu em rumo parecido, jogando com a indefinição de termos e afetos como se o filme se abrisse a todas as possibilidades e só elas, todas elas, infinitas elas, pudessem dar conta de seu maior personagem: um prédio abandonado em processo de reabilitação em Belo Horizonte. A indefinição, porém, é apenas um dos problemas do filme. O risco é que as críticas a ele também caiam nela, travando na aparência, sem esmiuçar as entranhas desse elefante que, de tão morto, ficou branco. Meus incômodos – palavra repetida à exaustão e sem muito questionamento nos corredores do cinema contemporâneo – não estão na vontade de poesia, nos excessos, na afetação, na suposta liberdade... é preciso tomar cuidado para não transformar intenções legítimas e não-qualitativas (pois rendem filmes bons e maus, indistintamente) em interdições simplificadoras que usam a má aplicação como evidência. Tentarei desemaranhar a retórica para, não sem esforço, chegar ao filme. 

Logo no começo, um cômodo de um apartamento já em ruína é reocupado pelo filme. Uma exuberante poltrona verde é inserida no ambiente como berrante dado estético no meio do plano depauperado pelo tempo. O diretor faz uma intervenção direta no espaço, colocando fisicamente um elemento estranho que expõe como aspiração de cena a necessidade de que passado e presente sejam re-situados. Mais do que isso, é também um dado de evidente inclinação estética: uma bela cadeira colocada em um lugar onde não há mais ninguém para sentar, condenada à inutilidade de sua beleza, em um joguete parecido com as maletas trancadas expostas como obra de arte de Lara Favaretto, nesse resumo da finalidade sem fim que tanto marca o discurso dos estetas. Logo em seguida, fusões trazem para aquele ambiente outros corpos, outros fantasmas, outras histórias, usando não a intervenção direta, mas aquela feita pela manipulação das propriedades técnicas do cinema, para também reabitar aqueles espaços. Há, portanto, um duplo esforço – um material, outro formal – de apontar em uma mesma direção ideológica de recuperar o passado por meio de uma estilização exógena de origem presente.

Essa tendência de reunir ruínas de um passado espacial com projeções fantasiosas do presente é um dos mais desgastantes vícios de uma visão dominante na arte contemporânea. Há, nesse discurso, aquilo que Rancière identifica como uma “mais-valia artística” que confere, automaticamente, relevância à obra, inventariando subjetividades ao mesmo tempo em que trabalha sobre uma matéria que condensa, a um só tempo, passado e presente, público e privado, dentro e fora... as ruínas de um sonho e de uma ideologia política que permanecem, na obra (prédio e filme), feito mortos-vivos. Balança Mas Não Cai é todo movido por um discurso ao mesmo tempo saudosista e progressista, bucólico e urbano, otimista e lamentoso. Pela oposição de binômios que se anulam, chega-se, novamente, à mais nefasta indefinição.

Um filme, porém, não é feito de indefinições. Ele é feito de escolhas muito concretas, por mais que as mudanças de época criem uma certa ilusão de dissolução nos impulsos impalpáveis das imagens eletrônicas. Como a moça que vagueia pelos escombros do prédio, Balança Mas Não Cai parece também seduzir para o caminho da pura volatilidade, como se o filme carregasse uma vocação de coração de mãe, onde tudo é desejado e permitido. O prédio, por essa ótica, não é um só, mas um amálgama de lembranças, histórias, aspirações, trepadas, fantasias, conjuntura política e tudo mais que compõe qualquer lar, qualquer edifício, qualquer cidade. Mas antes de tudo, um prédio é feito de tijolos, argamassa e estruturas metálicas, assim como um filme, por mais “livre” que ele queira parecer, continua sendo feito de planos, cortes, durações, etc. E da mesma maneira que os tijolos, a argamassa e a estrutura metálica são trabalhados em função de um desenho – ou, mais expressivamente, um projeto – que delimita uma relação com o mundo (pensemos, por exemplo, em todo o significado artístico/político/ideológico implicado em cada caixote com janelas feito em série pela arquitetura moderna, e de como, Antonioni apontava, eles têm nos deixado malucos), os planos, os cortes e as durações também são a expressão material de um olhar.

O problema de Balança Mas Não Cai é o quanto essa “mais-valia artística” do recorte discursivo se esforça para se sobrepor e legitimar uma obra de arte de absoluta pobreza. É expressivo que um dos primeiros planos de Balança Mas Não Cai suba pelo prédio enquanto a câmera gira sem parar, feito uma criança que quer curtir a brevidade daquela tontura. Ao final, o espectador está tonto, mas o que se tira disso a não ser a vivência banal da tontura? A manipulação dos recursos da câmera para criar sentido (há um momento em que um truque de câmera faz o prédio balançar!), a voz embargada de poesia ruim, as projeções que jogam imaginários sobre as paredes do prédio decadente, a articulação entre relatos e relações, as vertiginosas gruas, o prédio que treme, a falta de estrutura camuflada como suposta liberdade... enfim, tudo em Balança Mas Não Cai se reduz à mimese de apreensão imediata e um tanto inconsequente que significa sem atentar exatamente pros significados. Não é à toa que o filme termine com um plano em reverse que faz lembrar a abertura de O Prisioneiro da Grade de Ferro, em que o Carandiru era trazido de volta da nuvem de poeira. Mas enquanto lá essa volta no tempo tinha um sentido claramente político, em que a arte precisava desenterrar problemas que foram enterrados vivos, aqui o recurso parece se limitar em fazer os carros andarem para trás, em uma nostalgia lúdica e sem propósito. O filme larga a mão de uma série de recursos sem questionar o quanto a maior parte deles – mas principalmente, o todo articulado por eles – já não é capaz de deixar impressão para além do contato imediato, telegráfico. O que fica é uma vontade clara de se impor como arte, mas não a curiosidade e a dedicação necessárias para realmente ter algum impacto além de um leve torpor ou desagrado. Filtrado por uma polifonia de várias vozes que nada dizem, aquele prédio, que o filme afirma ser símbolo e núcleo de tanta coisa, parece ser apenas um prédio qualquer.

Janeiro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta