in loco - cobertura dos festivais
Outra história
por Fábio Andrade

No debate que participei como crítico convidado, sobre Strovengah, de André Sampaio, falei um pouco da sensação de o filme não encaixar com um certo desenho indicado no cinema brasileiro recente. O filme, porém, se encaixa a outros, e a possibilidade de pensá-lo junto a O Homem que Não Dormia, de Edgar Navarro, e Corpo Presente, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori, vem deixar claro que esse outro desenho vai, ao longo dos anos, se tornando cada vez maior, deixando de ser uma dissonância em um coro razoavelmente afinado para criar, em outro caminho, uma outra possibilidade de canção – de berro, que seja – que vibra com inegável vida. Se é possível reunir três filmes de um mesmo ano (pois antes temos Meu Nome é Dindi, de Bruno Safadi; O Fim da Picada, de Christian Saghaard; Conceição, filme coletivo que tem entre os diretores o próprio André Sampaio) em um mesmo grupo de exceções, é sinal de que exceção não é mais um termo válido, e que esses filmes precisam ser pensados como mais do que a simples negação de um estado mais amplamente reconhecido. E que, dentro desse grupo, há também particularidades que os distinguem e que torna cada vez mais complicadas sistematizações como essa. São obras que complicam. Felizmente.

Um dado comum: são filmes que reconhecem que o cinema brasileiro não nasceu na década de 1990. É difícil e imprudente pensar na maior parte da produção contemporânea sem ter como paradigma a obra de Eduardo Coutinho no período (e não falo apenas de documentários), pelo que ela representa de consistência artística e ethos. De Coutinho, o cinema brasileiro herda uma clareza de posição do realizador diante da cena; um certo valor de mundo que se tornou ideologia corrente no cinema; uma igual atenção ao pensamento que os filmes criam para si e ao pensamento que eles desenvolvem em relação com o cinema, etc. Os três filmes aqui em questão vão, sem exatamente romper com esse paradigma (é mais como uma autoridade não reconhecida), reinserir o olhar de hoje dentro de uma história do cinema brasileiro muito mais ampla e múltipla.

Mesmo André Sampaio, que firmou sua carreira trabalhando “numa chave de invenção que atualizava as operações marginais a partir de uma mistura do pior-melhor cinema comercial brasileiro”, parece dilatar seu imaginário ao limite em que essa História não é mais pedra imutável a ser rodeada como objeto de culto ou desprezo. Em Strovengah – como em O Homem que Não Dormia e Corpo Presente – a história é tomada em sua materialidade, como tempo passado que se tornou areia a ser misturada a toda e qualquer matéria que pareça modelável, a ser incorporada e retrabalhada com a consciência de quem sabe ser parte atuante dela. Essa mudança é necessária pois, intencionalmente ou não, Strovengah não deixa de fazer comentários sobre seu momento histórico. Filme que vive em seu tempo, mas que escolhe como viver nele.

Mais uma vez, o ofício do artista é tomado como tema. Mas enquanto filmes como Os Monstros, Riscado e Os Residentes pensam a posição do artista em relação ao corpo social, Strovengah mudará o foco para o próprio processo de criação. Essa mudança é essencial e reveladora. Se há 10 anos a Contracampo era inundada por textos que pediam filmes brasileiros que dialogassem com o que de mais interessante havia no cinema internacional, essa provocação acabou por ricochetear no derivacionismo e na pura referencialidade. Em Strovengah, a personagem de Otoniel Serra se cercará de bonecos em uma casa na floresta (tradução perfeita para os mistérios do processo criativo) como um escritor se cerca de seus livros e fantasmas, mas o ato de criação dependerá de uma força imprevista que passa a mudar esses bonecos de lugar - como se a loucura e a beleza (a tal força aqui tem um nome, e é a personagem com quem o filme se irmana em uma antológica fuga de motocicleta invisível: Zé Belo, o louco) reconhecessem o quão inevitável é o assombro dessas influências, mas ao mesmo tempo desse a chave da liberdade da própria obra: é preciso tirá-las de seus lugares, movimentá-las, colocá-las em relação com corpos vivos. E pagar o preço por isso. 

Algo parecido ocorre com Corpo Presente. Como Rodrigo de Oliveira já bem situou a relação do filme com a história do cinema brasileiro em seu texto, talvez faça sentido chamar atenção aqui para outros processos colocados em curso pelo filme. Em primeiro lugar, a articulação desse imaginário com uma forma de enquadrar e de montar que lhe é alienígena e que funciona como uma espécie de comentário. Uma forma que é, inclusive, nada brasileira, nada paulista, e que provocará uma fagulha entre duas instâncias referentes: o universo e o tratamento (em última instância, matéria e forma). Há, na duração dos planos e na maneira como a câmera é colocada na altura dos olhos do mundo (a garota de cabelo rosa que dança na rave; a mamadeira no forno de microondas; o desaparecimento de Alberto naquele cinema hiper iluminado; a dança final de Cíntia), uma curiosa vontade de nota de rodapé. Não basta apenas a citação como dado de relação com a história, pois é necessário expor o signo ao tempo dentro do filme, de maneira que ele seja deslocado do resto da narrativa. A sua função dramatúrgica é extrapolada na tentativa de que o plano seja, também, um plano, apenas – e não apenas um plano, dentro de uma sequência.

A referência cinematográfica, portanto, não é pinçada como citação, nem diluída como estilo absorvido, pois ela – o cinema paulista; a cartunização à Boca do Lixo; o imaginário de Carlos Reichenbach – é confrontada a uma maneira de olhar que vem de outro lugar e que cultiva outros índices, outra cinefilia, outra forma de ver. Essa referência, portanto, é incluída no filme, mas ao mesmo tempo em que precisa se relacionar com o todo e se misturar a ele, os diretores usam estratégias para chamar atenção para o quanto aquele dado, aquele fantasma de uma história a se projetar sobre o filme, é também construído. Não à toa, os planos citados aparecem dilatados muito além do ponto de corte; como nos filmes mais recentes de Manoel de Oliveira ou no Sicília, de Straub e Huillet, há um desejo de filmar o ponto de corte, de usar a montagem para incluí-lo no plano, em vez de retirá-lo. É a maneira de o cinema se filmar como cinema.

Faz todo sentido que, à saída da sessão, a cena mais comentada do filme seja justamente a final, em que Cynthia – corpo seminu pintado de branco e peruca colorida – faz uma performance de dança japonesa na boate em que trabalha. Pois o corpo pintado é projetado contra o fundo branco do palco, em um desejo (ou uma inevitabilidade) de apagamento, de imersão no fundo (do palco, do plano e da cidade), que é recortado pelo verde berrante da peruca, e os olhos que saltam, inignoráveis, naquela clara convenção cinematográfica. De alguma forma, nos melhores momentos de Corpo Presente – filme sempre torto, mas sempre prazeroso de se assistir – Paolo Gregori e Marcelo Toledo conseguem a proeza fassbinderiana de, em um só golpe, desnudar a referência, revelar a convenção, e ainda assim usá-la com a plenitude de seu sentido original. O "gran finale" chama a atenção para seu artifício, desvelando sua intenção, sem com isso deixar de ser um "gran finale".

Não deixa de ser ilustrativo que palavras como “convenção”, “plenitude” e “sentido original” surjam em sequência a um texto que falava de nossa tradição moderna. Pois se Strovengah e Corpo Presente são filmes inegavelmente modernos – mesmo quando lidam com uma dramaturgia mais clássica, ela vem misturada e repensada por um viés que, usando a definição de clássico de Thomas Mann, não “prefigura”; que regurgita – é inevitável chegar a O Homem que Não Dormia, de Edgar Navarro, instigado por uma outra intuição: se há uma possibilidade de clássico na arte brasileira, ela passa necessariamente pelo primitivismo e pelo misticismo. Edgar Navarro, carregando a tocha em chamas de um cinema baiano que se nega a se apagar (e temos, em tela, Luiz Paulino dos Santos – autor, também, do argumento original de Strovengah; e feito espectro, projetando-se junto ao filme, Glauber Rocha), faz um filme primoroso que chega em um fim de noite em Tiradentes como uma enxurrada, forte o suficiente para atordoar qualquer sentido (a tal “moeda do sentido” que Walter Benjamin interdita em seu texto sobre o surrealismo), mas aflorando os sentidos – a sensibilidade – por um cinema ainda mágico, vivo e absolutamente misterioso. Misterioso pois abre clareira para caminhos que, mesmo conectados a um passado e a uma tradição muito claros e específicos, hoje parecem inexplorados. Chegando às telas trinta e três anos após sua primeira concepção, O Homem que Não Dormia controversa a impressão de que Edgar Navarro, primitivo e místico em inteireza, talvez seja nosso maior cineasta clássico em atividade.

Fevereiro de 2011

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