ensaios Do
trânsito ao transe-to Descontrole
e desorientação em Não por acaso, A Via Láctea e A Casa de Alice por
Ilana Feldman A
constelação de filmes produzidos nos últimos anos na cidade de São Paulo tem revelado
questões importantes e convergentes. Questões que se repetem, de formas diversas,
formando uma paisagem em trânsito: entre a estagnação e o deslocamento, a impossibilidade
e a mudança, a previsibilidade e a desorientação. Estar em trânsito, no caso de
uma grande cidade como São Paulo, é pertencer a um movimento permanentemente atravessado
e interrompido por situações que fogem ao controle, em que se está sujeito a todo
o tipo de acaso, imprevisto e acidente. Não por acaso, aliás, nunca se morreu
tanto por acidente de trânsito nessa cinematografia paulistana recente, cujos
filmes têm transformado o espaço urbano – e o espaço doméstico a ele correlato
– em um espaço de conflito privilegiado. Tal é o caso, justamente, de Não por
Acaso (Phillippe Barcinski, 2006 - foto acima), A Via Láctea (Lina
Chamie, 2007) e A Casa de Alice (Chico Teixeira, 2007), dentre tantos outros
títulos, como indica a programação da mostra Vivendo
e Morrendo em São Paulo.
Tal ênfase em um espaço
urbano cujas vicissitudes ultrapassam as vontades e os desejos dos indivíduos,
e contra o qual eles nada podem fazer, não é, decerto, recente. No texto “São
Paulo no cinema: expansão da cidade-máquina, corrosão da cidade-arquipélago”,
Ismail Xavier, em uma análise comparativa entre O invasor (Beto Brant,
2001) e São Paulo S/A (Luiz Sérgio Person, 1965), já apontava que “a paisagem
do cinema brasileiro dos anos 90-2000, em sua vertente sério-dramática, destacou
um tipo de situação em que a engrenagem do mundo ultrapassa o personagem e este
se vê em lida com uma situação com a qual não consegue controlar”. Nesse mesmo
texto, publicado na revista Sinopse de setembro de 2006, Ismail ainda lembrava
que os filmes paulistas dos anos 90-2000, ao sugerir uma relação sugestiva com
a cidade, traziam elementos contrastantes com as óticas de representação do cinema
dos anos 60. Pois, enquanto lá havia a experiência identificada com o desenvolvimento
e crescimento econômico, nos anos 2000 teríamos uma situação de impasse, relativa
estagnação do desenvolvimento social e um crescimento econômico descontrolado
pela hegemonia do capitalismo financeiro. Passada
quase uma década, tal sensação de impossibilidade e impotência foi adensada face
às contingências da vida urbana contemporânea, e, historicamente o signo da modernização
do país, a cidade de São Paulo tornou-se imagem da desordem, do descontrole, da
desorientação e da dissolução. Desordem e descontrole, é preciso notar, não desprovidos
de perspectivas afetivas sobre a cidade e seus personagens. Essa cidade então
entrópica, outrora marcada por tantos projetos de futuro, como em São Paulo
– Sinfonia da Metrópole (Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, 1929), nos faz lembrar que não
haveria mais teleologia possível, como aquela que marcara o modernismo dos anos
20 e o cinema moderno dos anos 60. Os tempos são outros e, quando a morte não
vem interromper o trânsito da vida, como em A Via Láctea, temos os finais
em aberto, cujos sentidos variam entre o impasse e a incógnita (caso de A Casa
de Alice), ou, na melhor das hipóteses, apontam para uma doce esperança no
porvir (como em Não por Acaso - foto acima).
A cidade e os cineastas Cabe
lembrar, antes de tudo, que, para essa nova geração de cineastas paulistas, a
relação com a cidade e com os efeitos da vida urbana não implica uma relação de
sujeito e objeto, de eu e outro. A cidade de São Paulo não é o tema desses filmes,
não é o assunto “sobre” o qual se fala, assim como não é, simplesmente, um cenário
estático sobre o qual se desenrolam os conflitos de seus personagens. Antes, a
cidade de São Paulo é um organismo vivo, um personagem, uma instância fundamental
de mediação da vida social, seja isso explícito, como em Não por Acaso
e A Via Láctea, seja implícito, como em A Casa de Alice (foto acima).
Além de ser o meio, ou o medium, através do qual vive-se, ama-se e morre-se,
para esses filmes, a cidade também se apresenta como fim. Fim, como dissemos,
tanto como interrupção de uma trajetória (A Via Láctea) e suspensão de
uma expectativa (A Casa de Alice) quanto como horizonte de ação e afeto
(Não por Acaso), porém jamais como télos, consumação de um projeto
ou garantia de uma certeza, ainda que seja a certeza produzida pela ordem da narrativa.
O sociólogo e ensaísta Zygmunt Bauman certa vez notou, no
ensaio “Sobre a verdade, a ficção e a incerteza”, que compõe seu livro O mal-estar
na pós-modernidade, que as ficções modernas sempre tendiam a responder, como
um vetor de força contrária, a seus momentos históricos. Assim, durante os regimes
totalitários ou disciplinares, grande parte da literatura européia ofereceria
formas de escape e pontos de fuga. O mesmo, porém, talvez não se dê em nossos
esgarçados e permeáveis regimes democráticos, cujas ficções, sobretudo no que
diz respeito a um cinema artisticamente mais expressivo, ao invés de oferecerem
apanágios e sentidos coesos, incorporam e introjetam, muitas vezes amplificando,
seus próprios sintomas e patologias sociais. De um “cinema em trânsito”, baseado
em formas erráticas e contingentes de deslocamento do corpo, talvez pudéssemos
falar, em alguns casos, de um “cinema em transe-to”: transe não apenas
como conflito e morte, mas como desorientação, desnorteamento e, mesmo, colapso
da percepção. Tal
colapso está presente verticalmente na estrutura e em toda a seqüência de abertura
de A Via Láctea, cuja montagem descontínua e a música dissonante exprimem
o estado mental do professor e escritor Heitor, que, após romper um relacionamento
amoroso pelo telefone, já não consegue mais ordenar suas palavras e ações, situação
que o fará morrer atropelado – enquanto passa em revista sua vida, delirando estar
imobilizado em um carro engarrafado. Em Não por Acaso (foto), Enio, um
metódico e disciplinado engenheiro de trânsito, cujo olhar onisciente sobre a
cidade, tal qual um demiurgo ou um narrador do cinema clássico, não permite que
ele evite um acidente de trânsito que alterará o rumo de sua vida, também perde
o controle sobre suas ações e emoções. Situação que o faz, ao entrar em desespero,
desorganizar deliberadamente o fluxo do trânsito da cidade para conseguir impedir
a partida de sua filha Bia – encontro que, não por acaso, produzirá o desencontro
no segundo núcleo dramático do filme. Já em A Casa de
Alice, a crise e o colapso da protagonista, uma manicure casada com um taxista
e mãe de três filhos homens, se dão por ela não conseguir mais ter controle sobre
sua vida e sua família, quando afloram seus desejos, as traições de seu marido,
as brigas entre os irmãos, o conflito de interesses com a avó e os problemas financeiros.
A cidade aqui entra em cena tanto pelos deslocamentos de ônibus de Alice até o
salão onde trabalha, como, sobretudo, pelo som ambiente e pelo som do radinho
de pilha que atravessam essa casa tão porosa, invertendo a relação dentro e fora,
espaço doméstico e rua. Nos três filmes, o que está sempre em foco são as relações
afetivas e o modo como elas são atravessadas ou interrompidas pelo espaço cinético
da cidade – uma cidade de várias faces: doce, familiar, inóspita ou violenta,
mas todas em trânsito.
Uma cidade (in)diferente
Como podemos
perceber, a pauta atual do cinema paulista é a pauta do indivíduo em tensão com
uma situação que não consegue ordenar, controlar ou, simplesmente, compreender,
ao contrário da pauta da violência social e urbana, cara, tradicionalmente, ao
cinema produzido no Rio de Janeiro - como em Cidade de Deus (Fernando Meirelles,
2003), Cidade dos Homens (Paulo Morelli, 2006), Tropa de Elite (José
Padilha, 2007), Alucinados (Roberto Santucci, 2007), dentre tantos outros.
Diferentemente do Rio, em São Paulo os acidentes de trânsito e as mortes que atravessam
grande parte dos filmes não são provocados por qualquer conflito de classe ou
ressentimento social, mas pelas vicissitudes e acasos gerados pela “intensificação
da vida nervosa” da cidade, como diria Simmel. Pela sensação de imobilidade e
impotência que acomete o indivíduo (sobretudo aquele que perde horas de seu dia
nos engarrafamentos da cidade) e pelas conseqüências das ações humanas em conjunto,
das quais não há demiurgo ou olhar onividente – como o de Enio, controlador dos
fluxos urbanos em Não por Acaso – que nos faça escapar. Nesse
sentido, na organização estrutural bastante clássica de Não por Acaso,
por exemplo, não haveria acaso (como tanto foi cobrado do filme pela crítica,
na época de seu lançamento), mas uma convergência de ações humanas que produzem
determinados efeitos – premissa que tornaria o filme existencialista, e não trágico,
pois tudo o que há na vida, segundo sua lógica, é a responsabilidade por nossas
opções e decisões. Se Enio acredita ter controle sobre sua vida regrada, o que
se revela uma ilusão, a instância narrativa do filme organiza e controla o crescente
descontrole de seu universo diegético, como um narrador do cinema clássico que
vê do alto, que detém um ponto de vista privilegiado sobre tudo e que desenvolve
uma consciência extra-temporal sobre o passado e o futuro de seus personagens.
A cidade em Não por Acaso não é realista, como se poderia supor apressadamente,
mas uma projeção idealizada do mundo interior de seu protagonista, assim como
a instância narrativa do filme, que tudo controla e observa, parece ser, às avessas,
uma projeção alter-egóica daquilo que Enio mais desejaria se tornar: um personagem-autor.
Aqui, é o diretor Phillippe Barcinski, como figura ideal, o alter-ego de Enio,
e não o contrário – o que também nos a leva a pensar que a autoria é sempre efeito
do mundo por ela criado. Já
A Via Láctea, se parte de uma estrutura narrativa conclusiva – uma, de
fato, romântica história de amor com início, meio e fim –, desestrutura, desorganiza
e descontrola, radicalmente, na montagem, qualquer possibilidade de linearidade
e cronologia temporal. No gigantesco engarrafamento no qual se encontra, absorto
e à deriva, o protagonista Heitor durante toda a narrativa, faz sol, faz chuva,
faz sol novamente e escurece, até a luz cair por completo, embora já não saibamos
mais se aquela experiência de imobilidade, desorientação e descontinuidade do
tempo e da ação transcorre durante um único dia ou se é a soma de experiências
e sensações anteriores. Ao final, quando nos damos conta, porque assim o filme
nos mostra, de que Heitor está morrendo, por causa de um banal atropelamento,
e de que todo esse delírio por caminhos e descaminhos da cidade em busca da reconciliação
amorosa se passa em sua vida mental, percebemos que a tal Via Láctea enunciada
pelo filme não diz respeito a uma instância cósmica organizadora de sentidos e
destinos, tal como acontecia na tragédia clássica. Pois o cosmos, que em grego
significa ordem, em A Via Láctea deixa de ordenar o mundo para gerir sua
desordem. Por outro lado, a própria Via Láctea, no lugar de um espaço sideral,
também passa a ser vista pelo filme como o firmamento, como um espaço transcendental
– o que, face à brusca e definitiva interrupção de uma vida e de um relacionamento,
confere ao filme um alento metafísico. Em
A Casa de Alice, diferentemente dos outros dois filmes, é o espaço doméstico,
como foco privilegiado, que é permeado pelos problemas e vicissitudes da cidade,
e não a cidade que é permeada pelos afetos do espaço doméstico. Ao contrário da
organização mais clássica de Não por Acaso, em que a câmera, não raro,
vê do alto como uma instância onisciente, ou da moderna desestruturação de A
Via Láctea, em que a câmera assimila o nervosismo do trânsito ou a fixa tranqüilidade
da natureza (o contraponto idílico da instância narrativa em colapso), em A
Casa de Alice, a câmera, sempre na mão e na altura dos olhos, individualizada
tal como mais um morador da casa, adquire uma instabilidade crônica e própria
a uma remediada vida de classe média baixa. Desde a primeira seqüência, somos
apresentados a seus cômodos desarrumados sob a luz da manhã: uma cama de casal
desfeita, um quarto com o beliche bagunçado, a sala ainda desabitada e a cozinha,
o único cômodo organizado da casa. Porém, durante toda essa apresentação, os enquadramentos
tremem sutilmente, como se a câmera respirasse, ligeiramente ofegante, integrada
ao espaço doméstico e quase anunciando um mau presságio. A partir daí, a narrativa,
construída por diversos planos-seqüência, será um caminho rumo ao descontrole
e à desordem e, justamente por isso, as seqüências finais repetem as iniciais,
fechando um ciclo e dando início a outro. Porém agora os quartos e a sala estão
ainda mais bagunçados e a cozinha, o espaço depositário da dignidade, do zelo
e do cultivo do amor na família, pela primeira vez aparece completamente suja
e desordenada. No entanto, se em A Casa de Alice a
dinâmica narrativa do filme parece inicialmente optar pela impressão de valorização
do presente, o que faria com que cada cena não existisse em função da estrutura
e do desenlace, mas em função de “si mesma”, como presença imanente, tal projeto
não é radicalizado, talvez porque o diretor não tenha querido, ou podido, apostar
nas (im)potências de uma experiência temporal menos controlada. Assim, não temos
acesso a um “verdadeiro” senso de rotina porque a estrutura do filme parece se
esforçar para eliminar tudo aquilo que não sirva a propósitos dramáticos claros
e pré-determinados, tudo aquilo que não seja funcional para a narrativa, organizando
o mundo de Alice excessivamente. Como cheguei a escrever na crítica ao filme, após tê-lo visto
uma única vez no Festival do Rio de 2007, “A Casa de Alice parte de procedimentos
estéticos e dramatúrgicos modernos, mas continua refém de uma estrutura narrativa
ainda bastante clássica e controladora: excesso de situações dramáticas, conflitos
adensados, viradas de roteiro e soluções ex-machina”, como, justamente,
o acidente de trânsito que matará a “rival” de Alice, abrindo caminho para que
ela possa ir ao encontro – frustrado – de seu desejo. Porém,
se a dramaturgia e a montagem do filme parecem querer controlar, como um apelo
por socorro, aquela instabilidade crônica e incontrolável que ameaçaria o mundo
e a casa de Alice, bem como os destinos de seus personagens, o devir de Alice
permanece belamente em suspensão, entre a expectativa amorosa e a desilusão. Portanto,
se a casa não é mais de Alice, porque ela mesma a abandonou para seguir, ainda
que desorientada, suas pulsões, agora é a própria cidade que lhe pertence, com
suas esperas, errâncias, lacunas e ausências não preenchidas. Em trânsito e em
transe-to, Alice é o cinema paulistano. Setembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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