edição especial curtas brasileiros 2009/2010
“Recomeçar, mil vezes recomeçar”
por Rodrigo de Oliveira

Triangulum, de Gustavo Jahn e Melissa Dullius (Brasil/Alemanha/Egito, 2008)

Qual foi a última vez em que se viu, num filme brasileiro, os protagonistas embarcarem numa viagem a bordo de um tapete voador? E qual foi a primeira? Triangulum é o mais novo produto do casal gaúcho Gustavo Jahn e Melissa Dullius, radicados em Berlim, mas filmando no Cairo, um alienígena completo no panorama do nosso cinema (sobretudo por negar, com essa flutuação literal e metafórica, qualquer vínculo com o país – com qualquer país, na verdade). É um filme que existe no céu, de onde tirou seu nome, vindo de uma constelação, e que só assim, do alto, pode ser realmente aproveitado.

Um prólogo denominado “Um Golpe do Destino” abre o filme apresentando o trio de desgarrados que acompanharemos dali adiante. Um está ferido, o outro cego, e uma terceira tem algo nas mãos, uma fotografia dela mesma usando um xador muçulmano. Eles se encontram numa rua movimentada de algum lugar da Europa quando recebem a visita angelical de uma jovem que é a própria encarnação da idéia de destino, e que os levará – num passe de mágica (mais conhecido como trucagem) – à rua movimentada agora de uma grande cidade oriental. O tráfego pelos espaços é apenas metade do mistério: letreiros azuis anunciam que eles também foram enviados ao futuro.

A materialidade de Triangulum nos faz crer nesse mistério. O sobrevôo de tapete por Cairo é criado a partir de um contra-plongée simples, montado com planos estáticos da cidade na direção contrária (subjetiva dos personagens sobre a cidade que vêem do alto), e a sensação de flanar se dá por pura sugestão – nem mesmo os cabelos dos protagonistas precisam balançar para que o falseamento se dê de maneira mais integral. Trata-se de um falseamento claro e é exatamente nisso que o filme quer que acreditemos. O registro em 16mm reproduz nas imagens novas a mesma sensação que se tem diante de uma velha fita qualquer, como se a trajetória destes três fosse tomada de alguma sala de arquivo, reunida e montada com sentido novo. Até um triângulo reluzente é colocado flutuando acima da terra, como se a emprestar energia aos três amigos para que sigam adiante e abracem o mistério, mas eles mesmos parecem atados demais a essa terra, ao nível do chão, para poderem acreditar que é o vôo no tapete que os define.

Triangulum existe para confirmar uma premissa dos primórdios da arte: o cinema existe essencialmente como território privilegiado para o cumprimento de tarefas. Elas são mais visíveis no interior da trama, mas essa agenda é tão mais potente quanto mais exterior a ela for. Bilhetes recebidos de estranhos na rua dão as direções para que cada um dos amigos cumpra a sua jornada pessoal de descoberta e atordoamento, mas dificilmente o cumprimento delas levará a algum tipo de redenção. Se há um Godard a que o filme se liga intelectualmente é menos o das aparências tiradas do uso dos letreiros coloridos e jump-cuts e mais aquele do Grupo Dziga Vertov – e, por uma coincidência geográfica, o de Aqui e Acolá. As questões levantadas pelo francês três décadas antes não surgem renovadas, pelo contrário. Elipses e truques de montagem fazem do filme um exemplar involuntário das comédias do cinema mudo e de um filme da fase maoísta de Godard ao mesmo tempo: há espaço para o thriller existencial e para um mickeymousing na banda sonora.

Há um doce anacronismo na tentativa de Triangulum em ser pertinente à distância, em admitir a experiência do cinema como um evento de segunda mão, que acontece quando a imagem já está segura demais em seu caráter de objeto do passado para se sujeitar às demandas de uma juventude presente que precisa resolver, cumprir, chegar em algum lugar outro – daí talvez a tentativa inocente de colocá-los num futuro onde, supostamente, se encontraria esse objetivo a alcançar. Um jovem palestino recita um poema sobre reunir-se à pátria-mãe ao se misturar na lama de um acampamento, outra moça insiste nas possibilidades revolucionárias que uma vitória do povo iraquiano na guerra contra a América traria a todos os povos subjugados, mas o filme observa esses discursos com a mesma melancolia de Godard e Anne-Marie Miéville na sala de montagem de uma televisão francesa precisando dar algum sentido a um punhado de recortes de uma realidade que não os pertence, mas de cujas imagens agora eles são pais e responsáveis.

Quando o sujeito ferido lê seu bilhete dizendo que “Meca é onde o coração está”, Triangulum parece procurar, mais que o propósito ou o efeito das ações, simplesmente o local onde elas se darão de maneira efetiva. E situar o coração lá onde ele nunca será alcançado (pára-se no meio do caminho, numa tenda no deserto onde o ferimento sangra terrivelmente) é, de uma certa maneira, reconhecer que o lugar da imagem de fato é entre o aqui e o acolá, entre a produção e a recepção, mas que esse “entre” é ainda campo de pura especulação. O conhecimento desse “entre” talvez tenha se perdido junto com os livros da Biblioteca de Alexandria para onde o sujeito cego vai, trazendo de lá um maço de papéis que respondem certamente a algo, mas não às suas dúvidas; ou no simples contato pelo choque com as mulheres que usam o mesmo pano mulçumano na cabeça e que recebem um cartão com os rostos de várias outras mulheres com tarjas pretas nos olhos. É a História, a resistência à tradição promovida por uma modernidade que parece mal ter consciência de sua fragilidade, de seu atraso, de ser irremediavelmente retardatária.

O que não significa que o coração não deva continuar a ser procurado, seja lá onde estiver. Aos três viajantes do tempo resta reiniciar sua busca uma vez que a primeira tarefa parece ter falhado – “recomeçar, mil vezes recomeçar”, é o lema repetido ao longo do filme. Mas dessa vez assombrados por uma imagem da infância, da infância desse cinema vigoroso e aterrador de Gustavo Jahn e Melissa Dullius, como o viajante do tempo de La Jetée. Essa imagem é a de sua própria morte, a morte do voluntarismo, do desejo de movimento posto em prática por terra, mar, cor e preto e branco, do discurso daqueles que partiram e que só podem falar da resistência à distância (numa sala de montagem ou num café no Cairo, do Brasil a partir de Berlim), morte por fim de um sentimento pleno de juventude inconformada não por ser política, mas simplesmente por ser jovem. O que Triangulum garante a seus personagens – vividos pelos próprios diretores e pelo fotógrafo do filme, Michel Balagué – é que há agora o tapete voador, talvez o único espaço onde ver de longe significa ver melhor, e que quando toda essa jornada terminar, provavelmente aquele possa ser o transportador mágico para esse “entre” inatingível. Seja como for, Gustavo e Melissa agora já são, eles mesmos, pais e responsáveis por imagens de torpor e de enigma “aqui” em Triangulum. E “acolá”, onde estamos nós, talvez seja possível conseguir uma carona na próxima viagem do tapete. Que venha a vida adulta então.

Março de 2010

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