in loco - especial É Tudo Verdade
O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens), de
Leni Riefenstahl (Alemanha, 1936) por Julio Bezerra (colaboração
especial para a Cinética)
Sedução
pela imagem
A relação que o documentário estabelece
com aquilo que filma passa sempre pela indução e pela condução de determinados
sentidos, e pela construção de variadas significações. Neste sentido, O Triunfo
da Vontade é o filme de propaganda por excelência. Riefenstahl impõe às imagens
dois objetivos: a glorificação do partido nazista e a deificação de Adolf Hitler.
Atriz e dançarina, Riefenstahl ganhou a atenção de Adolf Hitler na direção de
The Blue Light (1931), um “filme de montanha”, gênero em voga na época.
Três anos mais tarde, a cineasta entraria na história do cinema, em um de seus
capítulos mais conturbados, com este filme-espetáculo sobre a convenção anual
do partido nazista em Nuremberg. O Triunfo da Vontade combinava as ambições
artísticas de Riefenstahl de fazer obras de grande apelo emocional e a necessidade
por parte do partido nazista de uma produção que gerasse uma imagem positiva em
um momento em que seu poder ainda não estava inteiramente consolidado. O
Triunfo da Vontade expressa artisticamente uma concepção heróica de vida.
Muito da eficiência das estratégias de Riefenstahl vem do aspecto heróico contido
nas imagens, na trilha e na combinação delas. Isto está presente na abertura do
filme, nas imagens de Hitler contra o sol ou o céu, nos festivais e movimentos
coreografados de soldados, na onipresença de bandeiras. A Alemanha é esboçada
como um país de heróis comandados por deuses. A trilha de Herbert Windt mistura
Richard Wagner, folk music e canções do partido nazista, e sugere uma determinada
e antiga tradição. Dessa maneira, O Triunfo da Vontade se desenvolve como
uma variação da fórmula problema/solução, típica da grande maioria dos documentários.
Discursos de líderes do partido nazista falam sobre a desordem da Alemanha pós-Primeira
Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que apontam para si mesmos como solução para
os problemas do país. O filme se esforça para instigar os espectadores (em especial
os próprios alemães da época) a endossar as realizações do partido e de seu líder,
para recolocar o país em um caminho de prosperidade e poder. A
Riefenstahl também interessa demonstrar a unidade do povo alemão e sua solidariedade
ao partido nazista. Assim, temos o registro de algumas tradições musicais e de
vestimentas por meio da apresentação de camponeses, soldados, crianças, mulheres,
etc. Além dos líderes do partido e de Hitler, não há personagens, mas a massa.
Essa representação se refere à aglomeração de pessoas reunidas com um mesmo fim
e percebidas visualmente como um conjunto coeso e organizado. É possível dizer
que nunca houve, nem antes nem depois, um filme que capturasse de maneira tão
reveladora o espírito e a consciência de um movimento sociopolítico. Com muito
cuidado, O Triunfo da Vontade passeia de situação a situação, registrando
a vitalidade e a variedade do evento. Para
Riefenstahl interessava apenas apresentar um retrato vívido e convincente do partido
nazista e de Hitler, cuidadosamente coreografados, no melhor de sua forma. A cineasta
construiu, então, um retrato extremamente sedutor do partido nacional socialista
e de seu líder. Os acontecimentos narrados são espetaculares, e Riefenstahl faz
desse espetáculo algo excitante. A mise-en-scène, a edição e a música são
combinadas para criar um efeito hipnótico. A câmera se mantém sempre em movimento.
Este movimento coordenado das tropas e a cadência da trilha sonora deixam claro
que os habitantes da cidade experimentam não alienação, mas êxtase. Esta mobilidade
é evidente mesmo nos discursos dos líderes do partido nazista, o que nos chama
atenção não para a retórica da fala, mas para o rosto dos oradores. Até mesmo
a fala de Hitler nos é apresentada em meio a movimentos de câmera. Os
acontecimentos ocorrem como se a câmera simplesmente filmasse o que passava diante
dela, mas O Triunfo da Vontade não tem nada de impressionista, muito menos
de improvisado. Talvez seja excessivo afirmar que a convenção foi concebida inteiramente
em função do filme, mas é certo que esta foi a primeira vez em que o cinema foi
tomado em consideração na organização estética de uma manifestação desta grandiosidade.
Muito pouco teria acontecido como aconteceu não fosse a intenção expressa do partido
nazista de fazer um filme. Riefenstahl tinha muitos recursos a sua disposição,
incluindo a repetição de trechos de alguns discursos em outra hora e lugar. A
cineasta teve sob as suas ordens 120 técnicos e 30 câmaras de cinema e diz-se
que o material filmado teria cerca de 36 horas. Neste
filme, tudo é rigorosamente construído. Cada seleção que se faz, seja por determinado
close ou montagem, oferece um determinado nível de envolvimento e manifesta um
ponto de vista bem específico. Podemos tomar como exemplo a clássica abertura
do filme, uma espécie de instrumento de deificação. Numa aura de música celestial,
uma câmara invisível filma o invisível espírito de Hitler, que descia das nuvens
e estrelas do Valhalla a caminho da terra, pairando, cada vez mais baixo, sobre
a belíssima paisagem da Alemanha rural. Aos poucos a câmera passa pelas chaminés
das casas, e multidões de pessoas em histeria saúdam sua chegada. Silêncio. A
porta de um avião abre-se como que por mágica. O espírito divino assume então
a forma humana: Adolf Hitler. A forma se combina organicamente com o conteúdo.
Triunfo da Vontade responde perfeitamente a uma premissa da estética nazista.
O documentário é pura ação, “é a vontade que ganha forma”, como diria o político
e escritor nazista Alfred Rosenberg. Para entender a enorme
sedução que as construções de Riefenstahl produziram basta um exame mais cuidadoso
de alguns filmes hollywoodianos de sucesso – será fácil perceber a influência
de O Triunfo da Vontade. A entrada dramaticamente coreografada dos três
líderes nazistas inspirou claramente George Lucas em uma das cenas finais de Guerra
nas Estrelas – O Retorno do Jedi (1983); as tomadas aéreas de Gladiador
(2000) foram confessadamente influenciadas pelo filme alemão; e as imagens
de tropas em formação, filmadas em câmera alta, plongé, à espera do discurso
motivador de seu líder, é hoje amplamente utilizada nos mais diversos e recentes
filmes épicos, como de Coração Valente (1995) a Cruzada (2005).
No
entanto, O Triunfo da Vontade faz soar hoje uma nota admonitória contra
nossa tendência a acreditarmos piamente no que vemos e ouvimos em filmes classificados
como documentários. Para Riefenstahl, instilar confiança e levar-nos a afastar
a dúvida, por meio da construção de uma impressão de realidade, é fundamental.
A cineasta acreditava e apostou profundamente na ilusão cinematográfica – a ponto
de afirmar até o fim de sua vida que nunca foi nazista e de que nunca serviu ao
nazismo. Entretanto, não há nada em um filme, interior a ele e a suas imagens,
que determine radicalmente sua qualidade documentária, uma autenticidade inquestionável
em relação ao mundo. Aceitamos documentários como “verdadeiros” por nossa própria
conta e risco. Abril de 2008
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