ensaio A
serviço do Capitão Nascimento por
Luiz Soares Júnior
Revendo
Tropa de Elite, dou-me conta de que a trajetória descrita ali (a do comandante
Nascimento, mas sobretudo do Comandante como o núcleo de uma organização específica,
de uma instituição) se parece muito com a trajetória de certos personagens
de Stanley Kubrick- e não apenas me refiro a Nascido para Matar. Em certo
ponto, a psicose surge como algo quase inevitável, como a exposição de uma tendência
que regia, desde o princípio (e como princípio) a dita organização, instituição.
E Kubrick se compraz em demonstrar (demonstrar mesmo: num espírito analítico,
de dissecação de um estado dado) os ritmos, as rotas, as pausas e os avanços deste
percurso inexorável, fatal. Se trata menos de uma visão determinista, que implica
um certo princípio cosmológico regendo a coisa, do que da descrição de um dispositivo
preciso e limitado, suas regras e condições de funcionamento e falha. Uma
diferença, entre outras que eu apontaria, está no fato de que Kubrick quer demonstrar
não apenas o mecanismo, o funcionamento de um estado de coisas, de um determinado
grupo ou sociedade, mas de que se trata precisamente de uma representação, uma
construção (mental, social, política, tudo isso cristalizando-se numa criação
estética). Estamos diante (e não dentro) de um mundo criado com o propósito de
ilustrar certas condições e princípios – evidentemente, um mundo que ilustra estes
princípios com jogos de luzes e sombras, enquadramentos rigorosos, decupagem magnífica,
verniz operístico. Kubrick se distancia a todo momento dos conflitos que re-apresenta,
ele quer nos fazer apreender os princípios do dispositivo, sem que nos identifiquemos
(e restrinjamos) a esta ou aquela engrenagem. José Padilha aspira, no filme que
realizou, a emular o escarro de ressentimento psicótico que anima cada célula
do seu personagem. Verossimilhança como tara, como arma: este, um dos males de
Tropa de Elite. Voltando
ao primeiro parágrafo. Acho que o filme vai por aí. A princípio, o personagem
encarna aquela esquizofrenia a qual nos acostumamos todos na divisão social do
trabalho a que somos submetidos pelo sistema, o que sugere identificação: ninguém
é no trabalho o que é dentro de casa, ocorre uma cisão tida pelo senso comum como
natural, ou apenas psicologicamente explicável, mas em verdade condicionada por
contextos sociais, históricos, materiais enfim. Em um determinado ponto do filme,
essa divisão não permite mais dar conta das forças em confronto (ou em repouso).
Ela se mostra ineficiente: o sistema, a mecânica emperram, perdem função, precisão,
situação. Ou melhor: o capitão Nascimento desde o início do filme é mostrado como
um personagem nessa posição (psicótica). O filme começa daí. A descrição da "esquizofrenia",
da divisão entre ser humano e profissional, está reservada aos dois outros personagens
cuja trajetória acompanhamos, Neto e Mathias. Acompanhamos
mesmo? O filme nos dá a ver esses personagens crescendo, modificando-se ao contato
da realidade social, ao contato das injunções ligadas a ela? Mera ilusão, pois
os personagens nos chegam através da narração onipresente do Comandante Nascimento.
Serão projeções dele, punhetas de sua vontade de potência? Encarnam mesmo uma
oposição irredutível (e intercambiável por força das circunstâncias) entre a retidão,
o respeito racional à lei e a paixão aventuresca pela figura do herói, que deve
fascinar certa juventude? Ou são eles momentos distintos da "evolução"
de um único personagem, o capitão Nascimento, figura estilhaçada, psicótica que
tenta em vão reconstituir uma unidade perdida na junção de seus alter-egos e na
realização do ideal familiar como a terceira face do cristal, alienado da "contaminação"
social e profissional? A questão é que narrativa em off,
e a figura do capitão Nascimento que ela projeta, não se modificam ao longo do
filme. A pista não é dada de que o personagem é o espelho refratado de uma psicose
incurável, de um ponto de sutura entre o indivíduo, a pulsão e a função social
que impossibilita qualquer reconciliação (consigo mesmo ou com o mundo). O relato
que nos é apresentado se traveste de documento, se traveste de confissão subjetiva,
se traveste de necrológio à figura perdida de um homem arrasado pela alienação
social (experiência inerente a qualquer experiência de afirmação individual, aliás).
Se contenta em ser documento, em ser “realista”, em mostrar a realidade.
Que realidade? A de um homem dividido entre o refúgio da casa e a truculência
do mundo, entre dois papéis inconciliáveis e no entanto complementares? A
alternativa é falsa. O narrador off continua o mesmo, mesmo quando, em
certo momento do filme, ele vira uma espécie de Mefistófeles que induz seus alter-egos
a assumir o papel que se mostra cada vez mais incapaz de assumir. E, no entanto,
ele continua um profissional competente, truculento, à altura da insígnia fascista.
Um marido dividido, agora contra a mulher. Um narrador onisciente e fiel à veracidade
de seu testemunho. A
forma do filme, e é isso que nos interessa aqui, não reflete com radicalidade
a crise desenhada aqui. Ou melhor: a crise é minimizada, é mascarada pela oposição
“documento versus ficção” ou psicologia versus papel social. A questão que interessa
realmente é a seguinte: até que ponto o capitão Nascimento encarna não uma questão
de consciência- remorso como homem oposto à eficiência como profissional – mas
uma estratégia de poder: uma máquina capaz de usar a tudo e todos (a família,
dois companheiros de trabalho, a narração de sua própria história) a serviço de
uma ficção que se confunde com o próprio Tropa de Elite – com toda démarche
fascista, falemos a verdade. A ficção é a seguinte: todo
indivíduo a princípio é bom, é puro (simplificação do romantismo). Em determinado
ponto de sua trajetória, ele se corrompe. Pela contaminação de um mundo que, em
determinado ponto de sua trajetória, também se corrompeu. O mundo, a princípio,
também era puro, uma vez que fora criado por indivíduos em princípio puros. Em
determinado ponto de sua história, porém, ele foi corrompido. Pelo quê? Por uma
determinada forma de governo, por uma situação, por uma “história”. Pela História.
É preciso uma revolução (uma reação, aliás) que devolva
ao indivíduo e ao mundo o seu estado original de pureza, que reverta, breque o
curso da História (que nunca é evolutivo) e se reencontre o ponto preciso a partir
do qual tudo se corrompeu. Chegando lá, estirpa-se o tumor (a desigualdade social,
que faz dos garotos de classe média os novos vilões de um mundo cada vez mais
perplexo com a abundância de respostas e a ausência de questões? O judaísmo, numa
Alemanha igualmente perplexa?). Quando o tumor for extirpado, podemos retomar
o curso “natural” (e evolutivo) das coisas. Esse princípio de negação das várias
dimensões que constituem o homem (e da História, na qual elas se desenvolvem),
de que o jogo é mais complicado, de que indivíduo e coação social não se encontram
em um determinado ponto mas desde sempre se conjugam e organicamente se cumprem,
essa simplificação do material é sim fascista. Poderia-se
dizer: o filme é moralmente complexo, há uma construção dramática que privilegia
o equilíbrio, a trajetória dos personagens equaciona esse escalonamento dos valores,
etc. Mas formalmente o filme é devedor da noção de movimento perpétuo, de uma
alucinação sensorial que não deixa nenhum espaço para outra visão que não o desespero
do capitão de se afirmar uno e absoluto, em detrimento de estar cindido em dois.
Não há outra voz em Tropa de Elite, sequer na narração em off. Todo
o filme é contaminado por um único ritmo, sopro contínuo que confunde cérebro
e colhões num marasmo, interrompido aqui e ali por uma série de eixos quebradiços,
em torno dos quais a ideologia vai dispersando suas malhas: os garotos classe
média responsáveis por essa porra toda, para livrar a cara dos pobres e ninguém
dizer que sou fascista, devidamente punidos ao final por brincarem com fogo; o
apoio de uma certa noção equivocada de realismo que desconhece qualquer mediação
inerente ao discurso estético, que tenta naturalizar o discurso estético, colocá-lo
como um jorro pulsional, alheio a qualquer crítica, uma vez que é uma força da
natureza; assim, Padilha não faz nada além de voltar a câmera para os fatos, de
“mostrar a realidade”. Que fique claro que também
não me interessa discutir ideologicamente se o filme é ou não fascista, pois cinema
não se faz com intenções, mas com cores, ritmo, cortes, tempo. A crítica é tão
somente em relação aos meios, e ao modo como a resolução formal da coisa toda
não aprofunda possibilidades bem interessantes que o filme deixa entrever.
Novembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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