sessão cinética
Tudo Perdoado (Tout est pardonné),
de Mia Hansen-Løve (França, 2007)

por Rodrigo de Oliveira

Uma questão de transmissão

Há um assombro que percorre toda a duração de Tudo Perdoado. Ele não se localiza na idéia do perdão, anunciada desde o título e revivida a cada nova seqüência como uma espécie de certeza, um crédito aberto por Mia Hansen-Løve, disponível à utilização ao mínimo sinal de sua necessidade. O assombro está menos no horizonte da conciliação e mais naquilo que precisa acontecer para que cheguemos até lá: o perdão supõe uma falta, um pecado, supõe a ação do mal. O Mal maiúsculo, absoluto? Não exatamente. Temos um pai escritor bissexto, viciado em drogas pesadas, e uma mãe a qual se impõe o endurecimento do espírito para que as frustrações dele não pesem sobre a filha. Mais importante: antes de serem Vitor e Annette, antes de existirem em suas singularidades, ambos estão, desde o começo, marcados pela paternidade: são “o pai” e “a mãe” por absoluta contingência. Porque quando ambos surgem em Tudo Perdoado já estão repartidos e reorganizados no corpo de uma terceira pessoa, da pequena Pamela. Um corpo que se desenvolve, um rosto que se transforma com a passagem dos anos, da infância à juventude, e que carrega a síntese do projeto de Tudo Perdoado.

Logo no começo do filme, pai e mãe discutem severamente em torno do vício dele, e a menina toma parte da situação de maneira marginal: os pais discutem em alemão, língua natal da mãe, mas há algo para além do conteúdo das falas, evidente na própria expressão física e na tonalidade das vozes, que não isentam Pamela de participar da briga. Mais adiante, depois que as duas se isolam do pai viciado, e passam-se 11 anos desde a separação, Pamela ainda muito jovem e respirando inocência será exposta sem meios-termos às condições do rompimento numa conversa com a tia. Em Tudo Perdoado não existem tempos, não existem países, não existem nem mesmo idades e atributos específicos a cada uma delas. Nem crianças nem adultos, apenas pessoas. As cenas são um território, um lugar a se habitar; uma zona franca, onde as trocas de sentimentos são diretas e inescapáveis, onde o sonho começa e termina com a duração de cada plano, e do qual é impossível sair sem marcas.

É estranho pensar que, num filme que dá a todo tempo a impressão de que “nada está acontecendo”, tenhamos seqüências bem gráficas do uso de heroína, uma agressão física entre marido e mulher, grandes encontros familiares em que os núcleos dramáticos se multiplicam no interior da imagem. Mia Hansen-Løve trabalha com matrizes narrativas muito distinguíveis, com uma estrutura que flerta com o clássico, mas todas as ações parecem sofrer de um descolamento primordial de seus executantes tradicionais: o jogo da causa e conseqüência se aplica aos gestos, nunca aos personagens. Estes estão sempre a um passo de escorregar por nossas mãos, com todo o resto nos permitindo fazer afirmações, definir personalidades, todo o resto menos seus rostos, seus corpos-território, espaço de uma fluência eterna, portadores do assombro e do mistério. Porque “aquele que se declina hoje se levantará de novo e renascerá”, e Tudo Perdoado precisou nos envolver com o sorriso irresistível e a graça de Paul Blain, logo ele, adicto, “destruidor de famílias”, para que quando sua ausência for irreversível, passe a Pamela este mesmo sorriso e esta mesma graça, já sem toda a carga negativa do pai – mas até quando?

Algo foi transmitido, uma geração cedeu espaço à outra, e nem por isso podemos falar de uma evolução, de lições aprendidas e faltas não-repetidas. A caminhada final de Pamela para o interior de uma floresta densa: vontade de habitar, de experimentar, de viver com tudo o que for possível e apesar de tudo isso. Nenhuma amarra – aqui se pode incorrer no erro, porque tudo é perdoado e, portanto não há nada a se temer a não ser o próprio medo. Não há lição mais bonita a se ensinar a uma filha.

Outubro de 2009

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