Tulpan, de Sergey Dvortsevoy (Cazaquistão/Alemanha/Suíça/Rússia/Polônia, 2008)
por Eduardo Valente

Vento que sopra do deserto

Ao sabermos que Tulpan é uma co-produção internacional filmada no Cazaquistão sobre um povo nômade local, realizado por um diretor que vem do documentário e realiza aqui sua primeira ficção, uma série de pré-conceitos já vem à mente a partir deste idéia tão difundida nas mostras de cinemas pelo mundo de um cinema exotizante deslumbrado apenas com a exibição de uma "realidade estranha, desconhecida e peculiar" para deleite de platéias muito bem educadas e alimentadas de países do mundo inteiro. E nos primeiros dez minutos de Tulpan, quando basicamente se passa aquilo que lemos na sinopse (um jovem pastor de ovelhas é recusado pela filha de uma outra família ao pedi-la em casamento, passando a viver um tanto perdido sem a perspectiva de outras pretendentes no meio do deserto cazaque), os sinais mais imediatos não parecem indicar que veremos outra coisa: temos aí os tempos longos na exploração da paisagem exótica e um olhar para os costumes e personagens típicos de um cinema de proto-ficção etnográfica.

No entanto, na medida em que os personagens que formam a família nômade vão ganhando personalidades próprias e que o diretor Dvortsevoy vai deixando de lado o “observacionismo” fácil para cair mesmo na construção de uma ficção, o filme vai conquistando mesmo o mais resistente espectador. Isso porque Dvortsevoy consegue por um lado deixar de lado qualquer resquício de exotismo no tratamento dos personagens, se atendo de fato à sua dimensão humana e profundamente pessoal, com a ajuda de um elenco realmente impressionante entre seus rostos e presenças físicas poderosos. Mas Dvortsevoy ousa mesmo é ao não se ater à esta idéia da presença física, tão comum ao trabalho com não-atores em filmes como os que temíamos encontrar aqui. De fato, uma das marcas mais fortes do seu filme é a presença de um humor inesperado, quase irônico, que olha de igual para igual estas pessoas em um ambiente distinto, sem considerá-los meras curiosidades e sim um agrupamento social humano como qualquer outro. Dvortsevoy constrói esse humor com um timing absolutamente preciso e muitas vezes surpreendente, como podemos ver na excepcional cena do atendimento do veterinário, e sua "briga" contra uma mãe camelo.

Para a construção deste timing e personalidades dos seus personagens, Tulpan conta com uma montagem cheia de cortes inteligentíssimos (mudando o tempo de cena), mas principalmente com um trabalho de câmera de enorme sofisticação por parte de sua fotógrafa polonesa. Ao invés dos planos longos e parados que responderiam a um clichê de como registrar a temporalidade daquele lugar, o filme opta por uma pulsante câmera na mão que opera verdadeiros milagres de enquadramento e de foco no meio de uma movimentação de atores (sendo alguns deles crianças e animais - muitos) claramente bastante livre. Esta câmera, certamente herdada de uma experiência documental, ao mesmo tempo em que se permite ser agente da narrativa, cria um curto-circuito de percepção no espectador, propondo que talvez os dramas humanos num ambiente como aquele sejam tão pulsantes quanto em qualquer outro espaço. Fora isso, ela permite que o ambiente em torno se mescle perfeitamente à cena, dando tons quase surrealistas ao caráter absurdamente inóspito da região onde o filme se passa, marcada no filme principalmente pelo horizonte distante e a onipresença do vento - que além de presença visual através da areia que voa, é muito bem explorado pelo desenho de som (que, aliás, também é muito sofisticado nos jogos de dentro e fora de quadro).

O que Sergey Dvortsevoy nos prova com este filme, em suma, é que a preguiça audiovisual é imperdoável característica para qualquer cineasta, porque usar os meios do cinema na sua expressão mais completa (câmera, som, montagem, atores) não é empecilho para dar foco a uma narrativa humana seja em que espaço for. Com este filme, o cineasta cazaque eleva o nível da discussão sobre uma série de trabalhos que se satisfazem em encontrar um personagem fascinante ou ambiente desconhecido, e se entregam à simples exploração dos clichês narrativos e de captação destes.

Maio-Outubro de 2008

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