sessão cinética
Um Assunto de
Mulheres (Une affaire de femmes),
de Claude Chabrol (França, 1988)
por Fábio Andrade
Um
clássico moderno
Nos finalíssimos minutos de Um Assunto
de Mulheres, a banda sonora é invadida por uma surpreendente
narração em voz over. Os últimos
passos de Marie (Isabelle Huppert) são contados pela voz
de seu filho, já adulto. Ele confessa uma parcialidade
da memória que atesta contra a possibilidade das imagens:
a morte de sua mãe lhe foi contada; ele não a presenciou.
Mas vemos as imagens impossíveis de Marie caminhando para
a guilhotina, com toda a ritualística cerimonial do sacrifício.
De onde vêm essas imagens? Quem as presencia? Há
uma presença possível para além da fabulação
e da imaginação daquele narrador? O corte final
é reservado para a própria lâmina da guilhotina:
quando ela é destravada alvejando o pescoço da protagonista,
o filme termina. Essa mudança brusca e inesperada no ponto
de vista da narração obriga o espectador a repensar
tudo que havia visto até então enquanto correm os
créditos finais. É o tipo de ato violento que explicita
com rara clareza algumas das questões centrais do cinema
de Claude Chabrol.
Em primeiro lugar, há um desconforto um tanto natural diante
dos filmes de Chabrol e aquilo que sabemos de sua biografia. Pois,
aparentemente, vários de seus filmes parecem por demais
clássicos para serem enquadrados no conjunto de obra dos
diretores da nouvelle vague - grupo de jovens críticos
franceses que requisitaram, e em certa medida cumpriram, outras
responsabilidades ao cinema. Mesmo na obra de Eric Rohmer, a idéia
de clássico é retomada por via do classicismo -
ou seja, por uma inflamação do clássico,
uma compreensão moderna de o que ele seria, revisitando
e revitalizando algumas de suas características mais marcantes
já com um distanciamento não desprovido de uma certa
ironia: o classicismo é uma forma de se realizar o paradoxo
de se chamar atenção para a adoção
dos motifs clássicos, de quebrar a diegese criando
uma diegese inquebrantável. Os procedimentos, a aparência
e o significado do clássico são resgatados por uma
atitude que é, em última instância, moderna.
O classicismo retoma a transparência do clássico,
expondo essa mesma transparência em opacidade.
No
caso de Chabrol, não parece haver classicismo, mas sim
um domínio exímio da produção de transparência.
Quando se vê Um Assunto de Mulheres, não
há distanciamento possível: é preciso estar
ao lado de Marie, compreender a dimensão de seus sonhos,
sentir suas dores, compartilhar suas ambições, ser
cúmplice em seus segredos. Todo o filme é construído
de maneira a produzir essa proximidade, em uma combinação
do esquartejo espacial cirúrgico de um Bresson (um filme
de mãos, de objetos, de detalhes), com a sensorialidade
artificial de um Hitchcock (o envolvimento pela evocação
de cheiros, sabores, temperaturas, etc). Mas Chabrol é
um sujeito de seu tempo e sua arte floresce no seio da modernidade
cinematográfica. Um Assunto de Mulheres não
é, definitivamente, um filme fora de sua época,
e o envolvimento que ele requere em nada depende de uma suposta
ingenuidade do espectador clássico. Um pouco como em Fassbinder,
a operação central de Um Assunto de Mulheres
é da perversão do clássico por um atitude
moderna que implode a transparência sem abrir mão
de seus efeitos. Ao contrário, a perversão só
é possível por a transparência ser alcançada:
tudo aquilo que vimos não era exatamente aquilo que acreditávamos
estar vendo. Mas não acreditamos?
Quando
a voz do pequeno Pierrot toma a banda sonora - voz já amadurecida,
já transformada por um devir que Chabrol tira de um extracampo
imprevisto e até então impensável - o que
acontece é mais do que uma simples surpresa final. Pois
essa pequena mudança transforma o que parecia onisciente
- uma câmera e um recorte espaço temporal deliberados,
que respondem a uma instância indeterminada - em uma visão
pessoal, parcial e memorialística. Com isso, toda a relação
aparentemente causal que organizava a narrativa ganha um sentido
oposto: o filme deixa de ser uma organização linear
e finalista, e passa a ser uma busca no passado por evidências
e articulações que possam conferir algum sentido
a uma experiência pessoal daquele narrador. É um
corte capaz de transformar qualquer flerte com a vulgaridade narrativa
em algo absolutamente invulgar: se Pierrot diz, ainda criança,
que gostaria de ser um carrasco quando crescesse, ou ainda se
é há um claro paralelismo no sacrifício em
praça pública de um pato e a decaptação
final de nossa heroína, isso não se dá por
necessidades premonitórias de dramaturgia, mas sim pelo
desespero de um homem que tenta remontar seu passado, encontrando
evidências daquilo que já se sabe inevitável,
tentando conferir algum sentido a um trauma que se funda na ausência
de explicações possíveis. Por que mataram
minha mãe?
Um Assunto de Mulheres é um
filme sobre esse trauma, sobre a lâmina que corre pelos trilhos
em direção ao pescoço de uma mulher que tentava
sobreviver - física e psicologicamente - da melhor maneira
possível ao horror que a cercava, sabendo que o trem não
deixaria de passar ao lado de sua casa, mas com a certeza de que
dormir em um quarto sem o barulho do trem era tormenta mais suportável
do que ter sua intimidade devassada por aquela máquina feroz
e faminta. O trem e a guerra não deixam de estar lá,
à espreita, mas viver é também ignorar a inevitabilidade
da morte, ou mesmo abraçá-la como parte da vida (lembremos
que Marie é uma aborteira, mas que essa atividade vem da
necessidade das mulheres vivas, e não por um apreço
funesto pela morte como exemplo - exatamente o contrário
do futuro reservado para a protagonista). Tudo no filme vem desse
último corte, da necessidade de dar sentido a um sacrifício
bestial em um mundo marcado pela bestialidade, onde a ética
tomou o lugar da moral e a justiça se divorciou da justeza.
Março de 2011
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