O Homem Urso (Grizzly Man),
de Werner Herzog (EUA, 2005)
por Leonardo Mecchi
Invasão de intimidade
Em 2004, um pequeno filme de um diretor estreante causou sensação
em Festival de Sundance pela maneira absolutamente original e
transgressora com que realizou um dos mais dilacerantes auto-retratos
já vistos na história do cinema. Longe de ser uma unanimidade,
Jonathan Caouette realizou com Tarnation (exibido no Festival
do Rio e na Mostra de São Paulo em 2004) um documentário onde
reconstrói sua turbulenta vida através de imagens que ele próprio
registrou ao longo dela.
Há muito de Jonathan Caouette em Timothy Treadwell,
personagem principal de O Homem Urso. Treadwell passou
grande parte de seus últimos 13 anos de vida em uma reserva natural
do Alasca, numa auto-designada missão de documentar e proteger
os ursos selvagens. Nos últimos cinco anos, levou consigo uma
câmera. Treadwell registrou mais de 100 horas de material, transcendendo
a mera documentação da vida animal e utilizando muitas vezes a
câmera como um confessionário, um espelho para sua subjetividade
tumultuada e permanentemente em conflito. Como em Tarnation,
temos um auto-retrato (ou, mais precisamente, uma auto-ficção),
alimentado por (re)invenções, vaidades, inadequação, raiva, obsessões,
voyeurismo e solidão.
Um ponto fundamental, porém, diferencia esses
retratos de Tarnation e O Homem Urso. No primeiro,
as imagens visavam uma confissão pública e foram editadas pelo
próprio Caouette. No segundo, até onde se sabe, tais depoimentos
eram de foro íntimo, uma espécie de auto-análise sem intenção
de se tornar pública, e as imagens foram editadas – e, conseqüentemente,
interpretadas – postumamente por Herzog, após Treadwell ser devorado,
com uma namorada, por um dos ursos. E é aqui que podemos analisar
o trabalho do documentarista, para além da eleição de um personagem
excêntrico e através das escolhas (práticas, estéticas) e dilemas
(morais, éticos) que o nortearam ao longo do filme.
O diretor alemão opta em O Homem Urso por
trabalhar com o imenso material filmado por Treadwell, completando
as lacunas desse retrato através de entrevistas com amigos e parentes
e alguns acontecimentos claramente encenados para a câmera (como
os rituais em torno do relógio ou das cinzas de Treadwell). O
simples fato de trabalhar com imagens tão íntimas e que não foram
captadas para tornarem-se públicas já impõe o primeiro dilema:
até onde expor seu personagem? O que mostrar e o que deixar de
fora? O fato do autor dessas imagens já estar morto (e ter sido
morto de forma trágica, como resultado de suas escolhas não-convencionais)
complica ainda mais essa questão, pela impossibilidade de um retrato
em primeira mão e pelo voyeurismo mórbido que tal situação peculiar
pode incitar no espectador.
Herzog caminha aqui numa linha tênue. Se a opção
por não exibir o áudio do ataque fatal captado pelo próprio Treadwell
(substituindo-o por uma imagem do próprio diretor ouvindo a fita,
seguida de uma cena de luta entre dois ursos suficientemente intensa
para alimentar a imaginação do espectador) era, mais do que acertada,
inevitável, a inclusão de uma cena onde o ambientalista declama
odes às fezes recém-expelidas por um urso não parece ter outra
função além de expô-lo ao ridículo, como uma pessoa cuja excentricidade
chega às raias da loucura. Treadwell parece não gozar da mesma
simpatia que Herzog reservou a personagens de outros documentários
seus, como Dieter Dengler (O Pequeno Dieter Precisa Voar)
ou Juliane Koepcke (Juliane Cai na Selva), mas é usado
aqui como antítese da visão de mundo do diretor.
E nesse sentido entra o recurso mais problemático
de O Homem Urso, que é a narração do próprio Herzog. Embora
seja um recurso comumente utilizado pelo diretor em seus documentários,
a narração de Herzog nunca foi tão invasiva quanto aqui. Por vezes
equivocada (como quando comenta sobre a “beleza silenciosa” de
algumas imagens de Treadwell, negando contraditoriamente ao espectador
sua apreciação), em outras redundante (exposições sobre a psicologia
de Treadwell que nada acrescentam ao que já havia sido mostrado
pelas imagens), a narração torna-se um dos pontos críticos do
filme.
Determinado a contrapor a visão de natureza do
ambientalista (harmoniosa, bela, vital) à sua própria (caótica,
destrutiva, fatal), Herzog continuamente contraria e contesta
as opiniões e declarações de Treadwell através de sua narração.
Apesar de prestar tributo a Treadwell como cineasta, Herzog parece
não respeitá-lo em suas escolhas e ideologias, levantando sérias
questões éticas ao documentário.
Nesse
afã de se impor sobre seu retratado, Herzog se aproxima de Michael
Moore em Fahrenheit 11 de Setembro ao ponto de, a exemplo do que
este fez com George Bush, supor e projetar pensamentos em um simples
olhar silencioso de um urso. Além de totalmente despropositado,
tal artifício, ao antropomorfizar esses animais, acaba por aproximar
Herzog de Treadwell.
editoria@revistacinetica.com.br
|