O Homem Urso (Grizzly Man),
de Werner Herzog (EUA, 2005)
por Paulo Santos Lima
Herzog empresta seu cinema para homem-urso
nascer
O
cinema de Werner Herzog é mitológico. Mesmo que os filmes deste
alemão não escondam a estupidez de seus personagens, desmascarando
uma quase vilania dos seus protagonistas, esses nos são apresentados
como super-homens, quase deuses em suas missões tão débeis quanto
sobre-humanas. Daí que só o mito pode validar esses homens numa
narrativa. Ou, melhor dizendo, somente uma narrativa pode trazer
à existência esses seres. Existência como imagem, claro, porque
estamos aqui falando de filmes.
Seguindo
esse processo que junta cacos míticos e podres, colados por uma
narrativa, Herzog empresta seu cinema às imagens de Timothy Treadwell
em O Homem Urso. Um exercício de humildade, na medida em
que o cineasta pegou emprestado o material filmado pelo próprio
biólogo, cerca de 100 horas de captação digital, e tapou os buracos
daquilo que seria uma construção narrativa com depoimentos contrastantes
sobre o maluco aventureiro - salpicados ainda por comentários
do próprio diretor sobre o protagonista. Um procedimento que confirma
a inexistência de barreiras entre o documentário e ficção, uma
vez que a câmera sempre filmará algo, de uma forma ou outra, encenado.
Se
a tendência atual parece ser de documentários que revelem algo
desconhecido ou denunciem uma disenteria do mundo, a mitificação
é também outra linha comum no gênero - como nos lembra O Triunfo
da Vontade, de Leni Riefenstahl. Ou mesmo a fusão de ambos,
como Ônibus 174, onde José Padilha constrói um mito sobre
o seqüestrador para atacar o descaso da classe média sobre a miséria
nacional, assunto este considerado do "mundo real".
Se trafega por elementos ficcionais, ao documentário vale a ética
empregada à ficção, ainda mais porque, sendo cinema, é ignóbil
um desnudamento de algo que antecede a imagem, como se fosse pertinente,
antes da captação da câmera, a tal verdade do objeto.
Herzog,
nesse coquetel de procedimentos, faz, antes de tudo, um filme.
Empresta seu nome para realizar o sonho frustrado que fez Treadwell
dar as costas para a civilização: tornar-se um astro. Dá vida
a alguém organicamente morto, mas também invisível como imagem,
uma vez que seus vídeos jamais chegaram à visibilidade mundial.
Se a encenação não é uma questão para Herzog, Treadwell só enxerga
o mundo como drama, como atestam os depoimentos dos pais e amigos
do falecido. Seus dotes artísticos estão, também, nas imagens
que ele próprio filmava: construção de planos, ensaio prévio,
narração oral moldando a persona dos ursos, ele se fazendo de
protagonista em cena, sempre em primeiro plano. Herzog deu novo
sentido a um material anônimo que mais dizia respeito a um homem
filmando pateticamente seu próprio blog, uma sessão de análise
que pouco responde à ordem daquele mundo selvagem. Utilizando-as,
Herzog não expõe o ecologista, mas sim ele próprio.
A
visão de mundo de Treadwell, mesmo que contestada por alguns e
posta em xeque (respeitosamente) pelo próprio diretor, mantém-se
intacta em O Homem Urso. O que é posto em discussão é algo
que ultrapassa o cineasta e os elementos apresentados no filme:
o cinema de Herzog, seus cuidados sobre a natureza, para ele,
uma muralha instransponível para o homem. Treadwell, ainda que
negue a civilização, tentou criar seu mundo (nada selvagem ou
irracional, diga-se) naquele ambiente animal. O sucesso - não
dele, mas sim da narrativa - só seria possível com a sua morte.
Treadwell passa a existir, cinematograficamente, pelo seu insucesso
com os ursos. Seu nascimento, como imagem, vem de sua morte. E
seu maior feito não foi a patética e questionável defesa da fauna
do Alasca, mas sim o que fizera como cineasta das selvas. Graças
ao encaixe do seu olho com o acaso daquele lugar, Werner Herzog
pôde levar a cabo o seu filme mítico.
A
quem ainda duvida disso, bastam o primeiro e o último planos do
filme, rodados pela câmera digital do homem-urso. Na primeira,
temos um quase Klaus Kinski com corpo contorcido para a câmera,
anunciando a odisséia. No último, com música folk legitimando
a lenda, temos uma situação romântica, ideal: Timothy Treadwell
direcionando-se para o fundo do plano, acompanhado por uma dupla
de ursos, um raro personagem herzogiano que termina em
sagração.
editoria@revistacinetica.com.br
|