Em Direção ao Sul (Vers le sud),
de Laurent Cantet (França, 2005)
por Eduardo Valente

Rosebud no Haiti

Sempre me parece conveniente olhar com especial atenção os planos com que um cineasta decide abrir e fechar o seu filme. Há sempre algo a ser descoberto naquela primeira imagem que se permitirá ao espectador ver do universo que será proposto a ele, e a última, que fará com que ele feche a sua percepção deste. Quando, como acontece neste filme do francês Laurent Cantet, estas imagens estão fora do campo direto da narrativa propriamente dita, possuindo assim uma força de “prólogo” e “epílogo”, tão mais significativa passa a ser sua presença, uma vez que elas têm reforçada o seu caráter arbitrário como abertura e fecho de uma determinada história. Assim, se podemos considerar que, dramaticamente falando, a história de Em Direção ao Sul tem início com a chegada de Brenda ao Haiti (a personagem cujo olhar seguiremos mais de perto ao longo do filme, e que nos guia naquele universo), há que se olhar com especial cuidado estes momentos imediatamente anterior e posterior à presença da personagem no país caribenho, para que possamos entender melhor do que deseja tratar realmente Cantet.

Enquanto espera pela chegada de Brenda no aeroporto, o personagem de Albert (que, depois veremos, é muito mais do que apenas um motorista – ele representa de fato uma visão histórica da ilha) é interpelado por uma mulher que implora que ele receba sua filha, uma menina bonita e pobre, e por isso mesmo fadada à tragédia. Nesta introdução, uma das poucas cenas que não tratam da intermediação entre o forasteiro e os locais, vemos que existe uma questão local anterior à chegada de Brenda, a estrangeira, no espaço dramático do Haiti – assim, portanto, a “inocência selvagem” já se encontra problematizada desde o começo. Se ao longo do filme vamos entendendo como a presença do estrangeiro condiciona e potencializa esta questão, ganha contornos ainda mais fortes o plano final, onde Cantet posiciona a cabeça de Brenda, que sai de barco do país, na lateral da tela, com o mar e a ilha ao fundo. O enquadramento, embora retrate uma partida, lembra muito uma representação do bom e velho “terra à vista” das narrativas de descobrimento, e enquanto a narração em off de Brenda vai listando as outras ilhas caribenhas como futuros destinos onde vai continuar a sua “procura”, o sentimento que fica é o do colonizador que espalha a semente da destruição pelos mais diferentes destinos. Um final, para dizer o mínimo, apocalíptico.

Infelizmente, fascinante que seja a correlação entre estes dois planos e momentos extremos da narrativa, o que está no meio deles (portanto, o filme em si) pouco faz além de ilustrar exaustivamente isso que já se encontra resolvido na simplicidade destes dois momentos: a complexidade da relação entre os empobrecidos países colonizados da América Latina e da África (onde o Haiti, com sua população eminentemente negra e sua história de luta pela independência e atual estado desolador, não é escolha aleatória) e a presença exploratória (mesmo quando “bem intencionada”) do colonizador. Tudo isso simbolizado na narrativa de um jovem haitiano que “trabalha” como michê para satisfazer as fantasias e incompletudes de uma série de mulheres européia/norte-americanas de meia-idade.

O formato escolhido por Cantet para narrar esta história é semelhante ao de um Cidadão Kane: um personagem central (Legba) que representa o enigma que todas as personagens à sua volta pensam entender, cada uma à sua maneira – mas que tal como uma esfinge, escapa constantemente às definições. Para deixar isso bem claro, Cantet dá a palavra de maneira “documental” a quatro de suas personagens, que, entrevistadas por um “documentarista fantasma”, expõem seus pensamentos sobre o personagem. Aparentemente apenas mais uma escolha formal, no fundo esta opção encarna todos os problemas que tornam o filme de Cantet tão pesado: um desejo discursivo que encarcera suas personagens ficcionais, as tornando pouco mais do que modelos para o desenvolvimento de um raciocínio sobre um tema maior do que elas. Legba, Brenda, Albert, são todos símbolos de algum tipo de postura e significação dentro do que o diretor deseja discutir. Com isso, o filme caminha com uma dureza eventualmente constrangedora (como quando Brenda fala sobre ter tido seu primeiro orgasmo com Legba, aos 45 anos de idade), que se mistura a um pre-determinismo absolutamente engessante (onde o final trágico do personagem parece mais uma imposição do projeto ao roteiro do que algo dramaticamente resolvido).

Ao fim e ao cabo, com seus jogos de poder (sexual) e suas dinâmicas de olhares entre as personagens, Em Direção ao Sul é o típico filme “interessante”: aquele no qual quase temos que excluir a experiência efetiva de sua fruição para conseguir retirar dos conceitos que carrega consigo o nosso prazer cinematográfico. Nesse sentido, talvez a melhor representação do filme seja a ausência estruturante do ambiente sufocante do primeiro mundo (sempre referido e onipresente, opressor, mas fora da diegese): um filme que é melhor no que não filma do que naquilo que efetivamente mostra.


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