in loco - cobertura dos festivais

A Vida Moderna (La Vie Moderne),
de Raymond Depardon (França, 2008)

por Julio Bezerra

Um mundo em perigo

Os “homens da terra” do cineasta Raymond Depardon simbolizam um outro aspecto não menos fundamental da identidade francesa: criadores de cabras, ovelhas e vacas, produtores de laticínios e pequenos agricultores. Não é a primeira vez que ele visita estas terras. O documentário é última parte de uma trilogia (de nome Profils paysans), dedicada ao mundo rural francês (os outros dois são L'approche e Le quotidien). Os camponeses estão envelhecidos, cada vez mais isolados. Estão se desfazendo dos últimos animais e seu dialeto (occitane) se encontra em vias de extinção. Seus filhos e netos surgem sempre insatisfeitos, sem muitas perspectivas para o futuro. Uma delas diz que “no futuro, o trabalho do camponês será inútil”. A Vida Moderna abre as portas de um universo em perigo.

O filme começa com um longo e suntuoso travelling divagando por uma estrada. Ecos da elegia Op. 24 de Gabriel Fauré o acompanham. Pouco depois, a voz do cineasta emerge em meio ao movimento. Depardon contraria nesses primeiros minutos as diretrizes de um cinema direto que outrora ele tanto defendeu (em filmes como Reporters, Faits Divers e 1974, une partie de campagne). A seqüência é fenomenal, pois insere o diálogo com aquele espaço e universo em um projeto que também é estético. O que se percebe, sobretudo, é o desejo de romper logo de saída com qualquer possível leitura miserabilista de seu projeto e eliminar a idéia de uma realidade rural pitoresca. Depardon soube captar com muita paciência e sensibilidade os resquícios de um outro mundo. Muitos travellings se juntam àqueles primeiros e A Vida Moderna parece pegar do road movie um determinado tom, sempre entre o passado e o futuro incerto e iminente. Seus camponeses têm uma presença incrível, habitam os planos sempre plenamente.

O documentarista personaliza as expressões desse universo em belos closes. Num deles, Depardon nos dá a ver em longo silêncio as marcas do trabalho e da solidão na face envelhecida de um personagem. Sentado à mesa, ele olha para o chão. Ao fundo, o tic-tac do relógio. O tempo está se acabando. Cineasta da palavra (que melhora como entrevistador), Depardon deixa seus personagens falarem diante da câmera em longos planos fixos. A Vida Moderna lembra por vezes a história oral, em que as falas dos entrevistados são uma espécie de fonte primária. A clareza e a franqueza emocional daqueles que falam dão ao filme uma força surpreendente. Em um mundo em que nada mais parece nos chocar, a sinceridade desses testemunhos é chocante.

O cineasta é sujeito de seu filme. Dos primeiros comentários ("No começo, existem essas estradas. No final da estrada, existem fazendas. Eu retorno a esses espaços”) até os últimos lamentos ("Esta noite eu filmei essa luz que é como nenhuma outra e que eu não esquecerei"), Depardon assume um tom quase religioso e faz de seu filme uma espécie de elegia. Ele é essencialmente uma voz, consciente e confiante, sempre em primeira pessoa, sempre em off. Uma voz que dá corpo ao olhar da câmera, que parece encantada com tudo, como que diante de revelações, boas (a luz do campo) e ruins (a morte de uma vaca). Assim, o registro objetivo transborda em sentimentos.

O documentarista não observa discretamente, não reconfigura poeticamente, não monta argumentativamente. A Vida Moderna gira em torno uma primeira pessoa que se engaja ativamente no que filma. Este é um documentário que se faz na observação participativa. Depardon foi para o campo, reviveu suas memórias de infância na fazenda do pai, participou da vida daquelas pessoas, habituou-se corporalmente ao tempo daquele espaço. Esse “estar presente” permite observação e exige participação. Depardon nos dá a sensação não só de como é viver naquele espaço, mas também como é para ele estar ali. A Vida Moderna é um filme de encontros. Ao espectador resta então a sensação de testemunhar uma forma de diálogo particular entre cineasta e personagens que enfatiza o engajamento pessoal, a interação negociada e carregada de emoção.

No fim, mais um travelling. Avançamos pela estrada, com o campo no retrovisor. Depardon promete um retorno. O que segue, mais do que uma bela homenagem, é a reafirmação de um ponto de vista. Como astros de filmes de ficção, Depardon nos reapresenta individualmente cada um de seus personagens. E eles nos encaram. Olho no Olho.

Outubro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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