visita guiada
Barulho na Cinemateca
("filme ocupa espaço, e tem cheiro!")
por Felipe Bragança

Esse texto é fruto da visita que fiz à Cinemateca do MAM no último dia 27.04.07. É uma carta aberta a Hernani Heffner, conservador da cinemateca, que me acompanhou pela tarde de uma sexta-feira em que pude revisitar os espaços da instituição.

A primeira vez que eu entrei na Cinemateca do MAM foi há somente 7 anos. Eu tinha 19 e estava no primeiro semestre do curso de cinema da UFF. Lembro ainda do mistério e do ar-condicionado barulhento, do professor João Luiz Vieira dizendo (ao te apresentar aos alunos): “esse é o homem, é ele quem cuida de tudo por aqui...” E a gente, uns moleques todos, juntos, da UFF, vendo você de luvas, de avental azul, um morcego naquela caverna, aparecendo no meio de toneladas de filme, um lugar úmido, escuro...

O cinema tinha peso e ocupava espaço(!!). Agora a gente via. Eu via – pela primeira vez:

Te procurei semana retrasada dizendo que ia fazer uma “matéria”, um artigo aqui pra revista, sobre as reformas, as tais novidades, as tais transformações dos últimos meses. Não sou muito bom em descrever espaços, em reportar (talvez as imagens descrevam melhor...), então o que tento fazer aqui é um pouco uma história. Uma história revista...

Eis aí a Cinemateca do MAM.  Você se lembra da primeira vez que entrou aqui? Há 27 anos atrás? 1980. Isso aqui era um acúmulo de filmes, um baú de filmes, não era? 30 mil rolos acumulados, que no final da década de 90 já eram 70 mil... 70 mil rolos, naquele prédio, do lado da Baía de Guanabara, cercada de acervos de artes plásticas por todos os lados. Uma aventura, um gesto de resistência, uma confusão, uma bomba-relógio.

Hernani, você me diz que entrou na Cinemateca, “de verdade”, em 1995. Próximo a um período em que a mesma estava praticamente fechada ao público, tinha se esquecido de ser o que era como instituição, tinha virado um sarcófago, um túmulo. Você, de alguma forma, viu tudo o que aconteceu com ela nos últimos 27 anos, não viu? Eu sei muito pouco.

Foi em 2002 que eu entrei ali de novo. Tinha sido selecionado para ser estagiário no “Censo Cinematográfico Brasileiro”... A idéia proposta era começar a entender o que existia ali, tirar a memória da lembrança de quem conhecia o acervo na própria palma e tentar organizar aquele marzão. Éramos quantos? 8, 10?  Período difícil, de expedições... da Cinemateca descoberta como um tesouro enterrado, enferrujado dentro de latas de metal, que a gente abria com força e chave de fenda, luvas, máscara no rosto, tosse, produtos com símbolo de toxicidade. Poeira.

Era assim. A Cinemateca do MAM toda cheia de segredos, de latas desconhecidas, de filmes perdidos e reencontrados, de histórias de negativos, contratipos, cópias únicas, de arquivos nunca mexidos. Tinha ali uma mistura de trabalho repetitivo e aventura: os filmes com partes faltando, as latas sem identificação, você na sala ao lado falando com o Rogério (Sganzerla) da importância de manter o negativo do Bandido são e salvo... E a gente ia aos pouquinhos aprendendo a abrir as latas de metal, a identificar, catalogar, classificar, cuidar do que a gente via... Passar horas numa enroladeira, numa moviola, tentando achar o título, o resquício, um numero de rolo que nos desse um norte. Era um esforço sobre-humano, surreal, anúncio de embarcação meio à deriva. Foi assim que chegamos a 2003, à tragédia do desmanche. Anunciada e planejada. Naufrágio?

Você se lembra da carta que a gente escreveu – os estagiários? Era uma mistura de raiva e certeza. Ler nos jornais o caos e o desrespeito que estavam fazendo com nosso trabalho, com as memórias dos filmes, com as possibilidades de soluções verdadeiras para alguma coisa que se chamasse de “política para a memória e a difusão do cinema” no Brasil... Daquelas reuniões cheias de interesses políticos que apertavam os filmes entre estratégias de poder, projetos sem chão, “jeitinhos”?

O tempo passou – cinematograficamente passou. E agora eu voltei – sexta-feira você me mostrou. E eu olhei: eis aqui a cinemateca do MAM, Hernani! O mesmo corredor donde você aparece com esse misto de ironia e completa doçura. Onde outros meninos estão erguendo novas prateleiras, carregando latas, documentos, filmes.

R$ 522 mil do BNDES. Uma reforma somada a respeito e cuidado da instituição, do museu, de uma nova diretoria. E eu encontro a cinemateca, a tua, Hernani (não “tua” porque você domine, mas porque ela te ocupa), agora está assim: agitada, revivida, cheio das mesmas pequenas confusões, mas iluminada por um cheiro de tinta seca, de filmes sendo cuidados.

Barulho na Cinemateca. Barulho bom. São quantas enroladeiras novas? Eu vejo 7 assim de relance (lembro das 3 que tínhamos em 2003). Algumas moviolas chegando, pescadas por aí – tens que consertá-las, colocá-las para funcionar! E os meninos de um lado ao outro, de máscaras, luvas, carregando peso, se embrenhando nas latas, virando noites... Mutirão! Cinema pesa! Cinema ocupa espaço... Fizeram mutirões...


É isso que se sente agora: a Cinemateca está andando de novo, os corredores de latas indo e vindo. Gilberto Santeiro (diretor) passando ao fundo – “Oi, Gilberto.” Você me conta que logo depois da debandada de 2003, sobraram 28 mil rolos no MAM – mais da metade de um acervo raro de filmes estrangeiros. “Agora já são 40.000”... Foram 12 mil rolos depositados em 5 anos – sinal de uma recuperação acelerada do acervo. Agora a Cinemateca do MAM tem uma reserva técnica nova, de fato, construída com propriedade. Vejo as fotos que o setor de documentação (Rafael de Luna) me envia. As obras, o resultado. Argamassa, verba, ar-condicionado novo, material, salas separadas para materiais em situações diferentes de preservação. Pouco cheiro de vinagre no ar.

Essa era a visita que eu queria fazer aí. Visita guiada. Podemos? Para eu ver de perto. Motivo final: saudade, sentido de obrigação mesmo. Porque não existe política consistente de preservação e difusão de cinema no Brasil. Sabemos. Não existe firmeza na articulação entre criadores, difusores, preservadores... Sabemos. Sabemos que a articulação entre as instituições de guarda e difusão é feita a base das miudezas, pontuais, das pequenas parcerias, das trocas mínimas.

Você me conta que a Cinemateca do MAM fez questão de não correr atrás dos acervos que foram embora em 2003... Você me diz que não acredita que o papel de uma cinemateca seja o de disputar filmes como valores de mercado, meritocracia do acervo mais relevante, fetiche da raridade. Ainda assim, continuam aí o acervo do Domingos de Oliveira, do David Neves, do Carlos Mossy, Bressane, outros. Bom saber.

Como também bom é poder falar da cinemateca não mais como um antro de “dons quixote”, de teimosia sem fim – mas talvez como um antro de obsessivos, conscientes de seus limites, metódicos. Você brinca comigo, diz que o IMDB anuncia que tem cadastrados “quase 1.000.000.000 de filmes produzidos” ao longo da história do cinema... “Vocês não param de fazer filmes... Dá nisso. Nós dos acervos só precisávamos de um ano sem filmes, que a gente dava um jeito nessa confusão...” Risos - um ambiente renovado. Em fins de melhorias.

É bom ver a tranqüilidade com que a cinemateca está andando agora: uma marcha mais tranqüila. A cinemateca funcionando, senão ainda como deveria ser nos seus ideais, já suficientemente viva. Quatro anos depois de seu quase desmanche, a cinemateca se organiza, coopera com outras instituições, ajuda no treinamento dos funcionários do Arquivo Nacional, volta a ser referência. Ainda estão sendo erguidas as estantes novas para a sala onde serão guardados os materiais de novas mídias: cds, dvds, magnéticos. Ainda estão sendo acertados detalhes na pintura das salas. Os ar condicionados já estão funcionando, potentes como máquinas pesadas, mas ainda faltam os desumidificadores de ar (“Pra cada máquina que se compra, precisamos de outras máquinas pra cuidar delas...”).

De qualquer maneira, se os bons caminhos se confirmarem, no final do ano, talvez, finalmente, a Cinemateca do MAM consiga um mantenedor exclusivo e fixo para suas atividades – aumentando sua comunicação com o público, digitalizando seu acervo de documentação em papel, criando salas para visionamento de vídeos. Difundir o cinema no Rio de Janeiro, a memória como alguma coisa viva, presente. E entender que a preservação é o braço final que potencializa o cinema como caldo cultural em movimento, expansivo, perene. Que se assuma o risco e a responsabilidade por essas imagens! O lugar dessas imagens! Porque é só isso que se quer e se precisa de uma política pública, de uma iniciativa de classe.

Eis, então, a cinemateca que você me apresentou, me fez gostar, ficar triste, com raiva, e agora ficar, mais uma vez enamorado. Eis a Cinemateca do MAM, viu? Aqui está ela. E, como você disse: com a molecada que está aí, com esses olhares novos e sem vícios, tudo parece começar de novo. Aprender a inventar alternativas, mais do que ocupar, criar espaços!

Obrigado pela visita, obrigado por ver os filmes sendo novamente cuidados, por poder ver a reserva técnica nova, pela mesma graça nos pequenos problemas que vão se administrando com paciência, teimosia e malandragem, pelos sacrifícios que você finge nem existir...  Obrigado pela teimosia e serenidade em meio a soluções histéricas e a falta de tato. Te deixo aí agora, aparafusando uma estante de metal, com todos esses filmes na cabeça (o cadastro mental se atualiza assim tão rápido?) e o peso deles nas costas. É essa, afinal, meu professor, a tua rotina – e mais uma vez: mais do que boa sorte, coragem e paciência aos nobres de coração. É isso.

Rio de Janeiro, 06.05.07

editoria@revistacinetica.com.br


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