visita guiada
Enredando pessoas
por Eduardo Valente

“O cinema é uma arte coletiva”. Se hoje a frase soa como clichê hiper-usado, é porque ao mesmo tempo em que ela reitera uma obviedade (a impossibilidade – pelo menos nos moldes do “cinemão” – de fazer um filme sozinho), ela muitas vezes esconde uma outra realidade: a de que, independente de usarem (o termo é importante) o trabalho de outras pessoas, inúmeros cineastas parecem existir somente em uma bolha isolada. Isolada, às vezes, da sua própria equipe (“trabalhar com” nem sempre é trabalhar junto); outras vezes, do seu meio; e, nos casos mais crônicos, isolados mesmo do seu tempo e da sua arte. Pois em Belo Horizonte, seis jovens “realizadores” (o termo cineasta poucas vezes pareceu mais inadequado para definir uma prática) reavivam a seu modo o clichê acima mencionado, e inserem real significado na frase. “Entrincheirados” numa casa-sede de produção, eles formam o “coletivo audiovisual” (a nomeação é deles mesmos) Teia, que, em quase cinco anos de existência, tem produzido seguidamente (e numerosamente) alguns dos trabalhos mais instigantes a circular pelos mais diferentes ambientes e circuitos de exibição audiovisual do país (e, é importante dizer, do mundo).

Essa variedade de espaços e formatos acima anotada certamente não é uma característica exclusiva da Teia (e, como já notamos aqui mesmo em Cinética, tem sido especialmente forte no recente audiovisual mineiro), mas por outro lado é algo que serve bastante para definir seus trabalhos. Tal variedade, pode-se dizer, é o resultado da equação que complementa a real coletividade existente no ambiente de criação da (hoje já assumida como tal) produtora com a força da expressão individual diferenciada de cada um dos seus seis membros. Para entender isso, a casa-sede da Teia (que pode ser vista aqui num passeio pelos seus espaços físicos) serve como metáfora precisa: ao mesmo tempo em que é um núcleo agregador (em torno de uma jaboticabeira, como eles fariam questão de destacar), possui espaços individuais de produção onde cada membro (ou dupla deles) pode levar adiante seus projetos pessoais. O que Clarissa Campolina, Helvécio Marins Jr, Leonardo Barcelos, Marília Rocha, Pablo Lobato e Sérgio Borges parecem conseguir exercer naquele espaço é uma realidade cuja aparência utópica fala menos de suas impossibilidades do que dos estranhos tempos em que vivemos: a convivência harmoniosa entre individualidades definidas e um espírito coletivo.

Como quase sempre é o caso, claro que tudo começou em bancos escolares: no entanto, na ausência de cursos universitários estabelecidos de cinema e audiovisual no estado, estes bancos tiveram que obrigatoriamente surgir multiplicados nos espaços existentes – oficinas de realização (algumas na capital, outras em “cursos de verão” – ou inverno – pelo interior), cursos universitários de outras especializações, etc. Foi assim, ao longo de anos, que estes seis realizadores foram “se cruzando”, e essencialmente descobrindo, como diz Helvécio Marins Jr., que “tinham outras pessoas normais” como eles querendo “fazer cinema” num estado onde esta hipótese parecia distante. Alguns vinham já de outras experiências coletivas (como o Mosquito), outros foram se juntando aos poucos (assim como um membro da Teia depois seguiu outros caminhos), até a decisão final de dividir um “espaço comum” – motivados inclusive pelo tempo cada vez maior passado dividindo a ilha de edição em casa (nada melhor para decidir arranjar um espaço do que “encher o saco” de ver o outro em casa o tempo todo).

É neste momento que surge a casa que até hoje os abriga, e que, de novo, tão bem os define. Com sua aparência de casinha simples de veraneio, num bairro não-central e eminentemente residencial de Belo Horizonte, a sede da Teia “personifica” várias das decisões e princípios que os moveram nessa junção de esforços: primeiro, a definição de que este espaço comum não fosse uma sala comercial; depois, a condição de que naquele lugar não se faria publicidade (algo que ressoa um outro grupo de jovens que se uniu e que hoje é parte essencial da história recente do cinema brasileiro, os gaúchos da Casa de Cinema); finalmente, uma questão de necessidade: o aluguel baratinho daquela casa simples, localizada em um bairro “não da moda”.

Para quem conhece os trabalhos realizados pela Teia, porém (e ainda mais para quem os conheça pessoalmente, um pouco que seja), menos importante e definidor que as características práticas da casa, parece ser um certo espírito que a habita, a começar pela presença constante da natureza (seja na árvore que “domina” o jardim interno, seja no silêncio da vizinhança – quase sempre complementado pelos cantos dos pássaros). De fato, quase todos os filmes da Teia (vale olhar o site deles) parecem incorporar no seu próprio seio esta dualidade constante que é estar no meio de um movimentado centro urbano, mas procurar viver ali um tempo diferenciado. Entre os azulejos típicos do banheiro antigo e os iMac espalhados pela casa, existe um ambiente que espelha o jogo da linguagem extremamente contemporânea dos trabalhos audiovisuais realizados (onde o digital é termo especialmente essencial) com a perenidade de muitos dos seus temas e objetos (e onde o Super8, outro formato de predileção na casa, entra com força).

Para um carioca de formação como eu, com passagens eventuais apenas por outras metrópoles “exemplarmente urbanas” (São Paulo, Nova York, Paris), é impossível não perceber que existe algo de intrinsecamente belorizontino-mineiro nesta forma de experimentar o mundo: em contato constante com o contemporâneo, mas muito próximo das raízes ancestrais de um outro tempo – tempo não só histórico, mas acima de tudo de fruição do mundo contemporâneo. Não por acaso todos os membros da Teia (todos os mineiros?) têm raízes diretas e próximas no interior, e tantos de seus filmes parecem ter uma qualidade audiovisual que parece ao mesmo tempo antiqüíssima e hipermoderna – onde a melhor expressão ainda parece ser “atemporal”. Atemporalidade esta, é bom que se esclareça, em que não existe uma nostalgia saudosista ou idealizadora do passado nem do “outro” encarnado no sertão, no interior. Como diz Marilia Rocha, o que os filmes da Teia parecem querer fazer é “resgatar e preservar o hoje”.

O que é inegável em uma tarde passada em plena Teia é que o hoje que eles vivem e desejam preservar é cada vez mais uma espécie em extinção: um lugar onde viver e fazer filmes não são atividades distintas – muito pelo contrário, são obrigatoriamente a mesma coisa.


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