Wall-E (idem), de Andrew Stanton (EUA, 2008)
por Diego Assunção

Infantil liberdade

Wall-E é um filme infantil. Só que engana-se quem pensa que o uso da palavra “infantil” trata de algo inferior. Infantil está mais para uma denominação que, consigo, leva a arte para aquilo que deveria ser o seu real objetivo: um instrumento de libertação. Por que o gênero infantil é “libertino”? Primeiro por causa do seu público, muito mais disposto a confiar e aceitar também a liberdade que o artista possa vir a tomar em qualquer inverossimilhança de roteiros, de regras morais, físicas e geográficas. Sendo a criança rebelde, livre por natureza (lembremos de Jean Vigo e seu Zero de Conduta), ela é a primeira a aceitar com os olhos livres e os corações abertos uma história de amor improvável, protagonizada por um casal formado por uma bela mulher e um monstro (A Bela e a Fera); a sentir as implicações morais e éticas do nariz mentiroso de Pinocchio (no filme homônimo); ou acompanhar com esmero a via-crúcis de um rato para se tornar cozinheiro (Ratatouille).

Mostre a qualquer adulto um filme como Hiroshima, Meu Amor. Ao fazer isto, não duvide que a pessoa possa cuspir na sua cara ao término da projeção, já que nele Alain Resnais leva ao esgarçamento uma história de amor, implicando-a numa estrutura labiríntica devastadora, de memórias, imagens e sons. O experimentalismo, o radicalismo eram a maneira que o artista encontrou para enxergar através de sua arte os sentimentos envoltos após a devastação promovida pela Segunda Guerra Mundial, do lançamento da bomba atômica, etc. Pois se muitos adultos cuspiriam em você caso aconselhasse esse filme, leve-os para ver Wall-E, filme que não absurdamente poderia ser considerado a versão “infantil” para Hiroshima, Meu Amor – ou até mesmo do filme seguinte de Resnais, O Ano Passado em Marienbad. Pois Wall-E tem o mesmo senso trágico, romântico e denso de ambos os filmes franceses. Se um trabalho de vanguarda é livre, assim como o infantil, este exemplar da Disney/Pixar, dirigido por Andrew Stanton (que já havia co-realizado Vida de Inseto e feito Procurando Nemo), é uma verdadeira obra liberta.

Como parte do Japão após a Segunda Guerra, Wall-E começa mostrando no que se tornou o nosso planeta: uma terra de ninguém entulhada de lixo e habitada somente por robôs, que tentam limpar a sujeira da humanidade enquanto ela se esconde numa nave paradisíaca (uma espécie de transatlântico) chamada Axioma, à espera do retorno ao lar. Os homens vivem nessa nave/navio, todos condicionados a uma espécie de vida boa, na qual ninguém tem nenhum tipo de esforço a fazer – ou seja, ficam todos meio zumbis, extremamente gordos e consumistas, sem sair de suas poltronas. A mensagem ecológica e a crítica aos hábitos da vida moderna estão por ali para serem absorvidos, mas não são o que realmente interessa no filme.

Há a rotina do robô que dá título ao filme, que vive a compactar lixo e transformá-los em grandes edifícios. O espectador acompanha os passos de Wall-E e recebe todas as informações através dos seus gestos e trajetos. Não há diálogos, não há piadinhas. Há desolação e a solidão do personagem, sentimentos que fazem dessa primeira meia hora de filme uma coisa bem incomum para os padrões de animações, até para os padrões elevados da Pixar. Sabe-se, por exemplo, que o olhar desse robô é muito mais humano, caloroso, do que de qualquer um dos humanóides que vivem em suas conchas intergalácticas. Ao contrário dos robotizados-homens, o robô é o único que parece se preocupar com as heranças deixadas pelos homens em seus séculos de civilizações. Ele é capaz de se emocionar e repetir passos musicais do filme “Hello, Dolly!”, além de se perder nas suas próprias funções ao tentar identificar um garfo diferente dos outros que tem em sua coleção, coletânea de artigos composta por diversos itens que se tornaram obsoletos para os humanos.

Wall-E é, assim, contraditória e ironicamente, o único ser, um robô, a cultivar uma vida, mesmo em sua solidão de ser dos poucos a habitar o planeta. Assim como o homem de Marienbad, o único que não age como um completo morto-vivo na mansão ao buscar sua amada que não se lembra dele, Wall-E será o encarregado de não só consumar o ato de heroísmo que possibilitará aos homens voltarem ao planeta como também aquele que injetará vida nos homens, ao se perder numa paixonite pela robô Eve, enviada a Terra para uma missão de resgate.

Existe alguma aventura, algumas piadas no filme, mas há também, o mais importante, o seu lado obscuro, aquele que toma conta da tela quase o tempo todo, capaz de fazer sim do cultuado Blade Runner um filme para criancinhas, já que os edifícios de lixo parecem muito mais aterrorizantes do que aqueles anúncios holográficos em néon da pérola de Ridley Scott. Há nesta animação, inclusive, uma cena em que o robô apaixonado busca por sua amada, ela que por problemas técnicos não o reconhece mais, por toda a nave Axioma, que antes de ser uma perseguição digna de filme de aventura, é dotada de desespero e sensação de descolamento que também estavam contidos em O Ano Passado em Marienbad.

Se a grande sacada do gênero de animação é aproximar seres improváveis de nós mesmos, “Wall-E” é um filme bem-sucedido, que transforma os humanos em estranhos em um mundo complicado, duro e belo, de dois robôs. Estranhamento e distanciamento que levam à identificação e aproximação.

Julho de 2008

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