in loco - cobertura dos festivais
Fomos à Terra dos Sonhos (We Went to Wonderland),
de Xiaolu Guo (Reino Unido, 2008) por Rodrigo
de Oliveira Sereno
olhar
O projeto de Fomos à Terra dos Sonhos parece
condicionar inevitavelmente os humores de sua realização. Xiaolu Guo é uma jovem
artista visual e escritora chinesa radicada em Londres que decide filmar a visita
dos pais à Europa com o equipamento mais ligeiro possível: uma câmera fotográfica
digital e um celular. Da apresentação dos pais surgem as imaginadas relações entre
o Ocidente e o Oriente (com mais de 60 anos, é a primeira vez de ambos fora da
China), e à medida que se afastam da Inglaterra e passam a percorrer o continente,
chegando a Roma e suas construções “muito antigas”, a viagem toma os contornos
de um confronto entre culturas ancestrais. Ao mesmo tempo, o registro informal
destas imagens tira seu caráter de travelogue e instala o filme num espaço bem
confortável: o do filme caseiro, diário das intimidades de uma família, naturalmente
preenchido de alguma poesia. As imagens em preto-e-branco, o “olhar estrangeiro”
duplicado, presente não só nos pais, mas também na filha, que nunca aparece em
cena – afetividade à toda prova. Contra o que se pudesse
absorver das experiências em primeira pessoa de Jonas Mekas (Reminiscences
of a Journey to Lithuania especialmente) a Jonathan Caouette (Tarnation),
a facilidade do registro digital parece ter embutido neste tipo de filme certas
qualidades intrínsecas, que independem de construção, de trabalho, de idéias:
está tudo lá, e a intimidade de uma família será naturalmente transplantada para
o filme e para o espectador, e os sentimentos da viagem serão compartilhados com
absoluta franqueza e coração aberto por quem quer que seja. Não é o caso, evidentemente,
e Fomos à Terra dos Sonhos toma uma posição muito curiosa neste sentido.
Contra
este ambiente do conforto reinante, Xiaolu vai montando um palco onde as forças
de seu pai são claramente superiores e preferidas àquelas apresentadas por sua
mãe. O velho Xiu Lin é um pintor que passou 10 anos num campo de trabalho forçado,
capturado pela Revolução Cultural como subversivo. Por conta de um câncer na garganta,
não fala – mas se comunica escrevendo num bloquinho, mensagens que a câmera da
filha reproduz e que dão o tom de todo o filme. Sua relação com o universo estrangeiro
é de porções iguais de espanto e admiração – ao contrário, a mãe Li He Ying descarta
qualquer aproximação com a Europa que não o comentário bairrista, de um apego
profundo às tradições chinesas e à maneira como vivem por lá. “Vim aqui para ver
o mundo antes de morrer, mas minha esposa quer voltar”, diz o velho chinês a certa
altura. Fomos à Terra dos Sonhos não esconde nunca
que seu olhar está afinado ao de Xiu Lin. O desnível não diz respeito ao jogo
familiar, não serve para instalar no filme nenhuma trama de bastidores, revelar
ressentimentos passados, nada disso – é uma decisão cinematográfica, antes de
qualquer coisa. Xiu Lin parece exercer uma influência sobre a filha que transcende
a relação paterna natural. Suas poucas frases são invariavelmente extraordinárias
(“1/3 das pessoas que morrem de câncer na verdade morrem de medo”, ou “as flores
estão mortas há muito tempo no túmulo de Karl Marx”), mas não há nenhum esforço
visível de sua parte para produzir grandes análises conjunturais e poéticas sobre
sua viagem. É um trabalho sereno e muito atento o de seu olhar sobre as coisas
que agora o cercam na Europa, e é dali que a cineasta em que sua filha se transformou
tira também suas maiores lições. Há momentos particularmente
belos onde Xiaolu Guo, “em vôo solo” (sem a presença dos pais em cena), registra
o movimento das pessoas no pátio do conjunto habitacional em que vive – uma espécie
de continuação involuntária de Da Janela do Meu Quarto, curta-metragem
de Cao Guimarães. É onde se percebe e se justifica mais claramente a proximidade
com o pai: os acontecimentos, antes de serem banais ou potencialmente esclarecedores
sobre qualquer “grande questão”, são apenas isto, acontecimentos. O relato, a
comunicação deste acontecimento, pode até nascer de alguma urgência (uma caneta
que não pára de escrever num papel por falta de outro meio de expressão, uma câmera
contrabandeada para dentro de um museu onde as imagens são proibidas), mas ainda
são letras e ainda são formas em movimento. E antes que o automatismo expressivo
surja como única justificativa para os sabores de Fomos à Terra dos Sonhos,
ainda é um pai produzindo involuntariamente alguma literatura, e uma filha lidando,
voluntária e conscientemente, com algum cinema. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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