Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock),
de Ang Lee (EUA, 2009)

por Rodrigo de Oliveira

Visão periférica

Brokeback Mountain terminava com uma porta de armário aberta e a prova física do amor entre dois homens exposta ali para quem quisesse ver. A própria idéia de um romance entre dois cowboys que se dava praticamente o tempo inteiro a céu aberto já indicava um tipo de determinação política que, se faltava enquanto agenda para o filme, estava lá como primado narrativo (e não poderia se esperar menos do sujeito que melhor filmou a burguesia mal-do-século americana em Tempestade de Gelo e transformou um ícone da fúria militarista em paciente crônico de terapia em Hulk). Nesse sentido, Aconteceu em Woodstock só não é um retrocesso ainda maior porque antes dele viera aquele novelão meio Manoel Carlos meio Carlos Lombardi que foi Desejo e Perigo. Mas, ainda assim, é no mínimo estranho que Ang Lee tenha escolhido voltar ao armário, ao constrangimento dos ambientes fechados e do drama parcial, míope, para contar uma história que se localiza no extremo oposto dessa postura. Das metáforas mais frágeis que o filme carrega, a maior delas é certamente a do festival de música e do movimento paz-e-amor como o marco central do outing de uma juventude reprimida pela América Profunda (e a oposição criada entre os hippies loucos que invadem Catskill por três dias e os moradores conversadores do pequeno povoado está aí gritando isso nos nossos ouvidos). Para isso precisamos de um protagonista que passe, ele mesmo, pelo trajeto do esconderijo à libertação, e é justamente por ignorar a menor possibilidade de nuance, de uma zona cinza qualquer entre o escuro do armário e o rosa do desbunde, que Aconteceu em Woodstock surge tão anêmico.

A começar pelo truque enganador de situar a narrativa às margens do grande evento. Elliot Teichberg volta para sua cidade natal no verão tentando salvar o pequeno negócio dos pais de ir à falência e, numa jogada esperta, convence os organizadores recém-despejados do Woodstock a levarem o festival para a cidade, usando o motel da família como quartel-general. Um filme de bastidores, portanto, onde a música, a multidão, os sentidos todos atribuídos àqueles dias de 1969 existem apenas como ruído no fundo da imagem, quando muito. Não veremos um número musical sequer, nem mesmo o palco (o máximo a que chegamos, como aconteceu com o próprio Elliot, é ver o espetáculo do alto da colina, sem definição), porque Ang Lee quer nos convencer que, num momento histórico tão repisado e maltratado pela simplificação da memória, ver menos significa ver melhor. Mas aquilo que sua câmera de fato registra não é nada diferente do desfile de tipos cômicos que se esperaria de um especial do Saturday Night Live sobre o assunto – com a diferença que lá, na televisão, a incorreção política e o abuso dos clichês nunca se disfarça de olhar humanista.

Elliot era um designer de interiores iniciante em Nova York, vivendo abertamente um relacionamento gay e recém-saído de uma participação no levante de Stonewall, marco da liberação homossexual, quando retorna à convivência com os pais judeus russos e “naturalmente” regride ao estágio de adolescente confuso com sua sexualidade (e aqui nem importa se há nisso alguma relação com os fatos, se tratando de uma história baseada num livro autobiográfico: o cinema tem a obrigação de ser menos ingênuo que a vida, quando ela se apresentar assim). A regressão tem muito a ver com a própria cidade, pelo menos da maneira como Ang Lee a filma – um principado caipira tirado dos desenhos animados, que parece exigir das pessoas que o habitam (oficialmente ou apenas por três dias) uma banalização de seus dramas em nome dessa dinâmica antitética do preso/livre. Há, claro, um ex-colega de escola que acaba de voltar do Vietnã com síndrome de stress pós-traumático, andando pela cidade aos berros, em roupas militares largadas e com a barba por fazer, se escondendo na floresta num delírio vietcongue e com um insistente barulho de helicóptero ainda batendo na cabeça.

Logo virá outro veterano de guerra, esse mais resolvido com as dores da batalha, toscamente travestido de mulher e disposto a fazer a segurança do pequeno motel. Uma trupe de teatro alternativo ocupa o estábulo do motel, e lá preparam uma versão nua e confrontadora de Chekov enquanto flanam pelo gramado com trajes esvoaçantes e gritos revolucionários – mas o símbolo da filosofia era-de-Aquário só pode ser assim tão patético porque do outro lado temos um pai carrancudo e uma mãe mais judia que Israel inteira (ela termina o filme jogada no chão, agarrada às notas de dólar conseguidas com o sucesso da empreitada do filho, no mais preconceituoso dos retratos produzidos pelo filme). Mas nem tudo está perdido para Elliot-devolvido-ao-armário: um belo pedreiro está à espreita e os dois se reunirão felizes à beira da jukebox em torno de um disco de Judy Garland. Mas é difícil engolir todo esse acúmulo de tipos como uma simples recaída na comédia de costumes porque há ainda o ruído lá no fundo da imagem (e, afinal de contas, por que escolher justamente o Woodstock e prometer no título original que o evento será “tomado” pelo filme, quando o próprio filme nunca se deixa tomar por ele?). É a camisa xadrez de Ennis Del Mar outra vez nos forçando a pedir mais de Ang Lee: de um cineasta que conseguiu embutir uma idéia de drama total num pedaço de pano tornado imediatamente uma peça de iconografia, perceber no vasto leque de ícones produzidos por 1969 um playground de superfície e explosão de cores é simplesmente muito pouco.

Resumo da ópera-rock: uma viagem de ácido na traseira de uma Kombi psicodélica não poderá nunca levar Elliot a transcender o espaço do veículo e atingir (eventualmente até flutuar sobre) o mar de gente e sonhos que se estende colina abaixo. Como o próprio filme, Elliot se diverte apenas com a animação gráfica dos motivos hippies pintados nas paredes da van-armário, ali onde ele está protegido da explosão de mundo que acontece lá fora e onde toda idéia de libertação se dá no movimento das mãos de uma Shiva decalcada. Ang Lee escolheu fazer um filme de reconciliação e apaziguamento sem nunca antes ter se oferecido ao confronto, à guerra que supõe a paz posterior. Aconteceu em Woodstock saiu como o souvenir anacrônico que nem o mais oferecido dos hippies contemporâneos teria coragem de vender na esquina: uma pulserinha de palha é capaz de carregar em si mais dignidade.

Dezembro de 2009

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