O Lutador (The Wrestler),
de Darren Aronofsky (EUA/França, 2008)
por Paulo Santos Lima

Quando viver é permanecer... no plano

O Lutador é, indireta mas fundamentalmente, um filme sobre o cinema, naquilo que essa arte está comprometida com a natureza dos objetos capturados e com o próprio discorrer do tempo durante uma captura de imagem. Os objetos, aqui neste longa, são corpos, sobretudo o grande corpo do protagonista, Randy "The Ram" Robinson (Mickey Rourke). Seu drama não ficará a escanteio, e por isso parece bastante evidente que esse pensamento sobre o corpo presta serviços à dramaturgia, e as teorizações em imagens surgem no próprio avanço da história. É um belo filme sobre o empenho em permanecer vivo, vivo como imagem, imagem viva, imagem-vida – a imagem-drama. Empreitada contra o apagamento, contra a tela vazia, escura, fantasmagórica.

Comecemos, portanto, no primeiro e no último planos de O Lutador. O filme abre com uma pan sobre os vários cartazes e bifes jornalísticos sobre as lutas de Randy "The Ram" Robinson, todas essas imagens bastante espetaculares, de glória vencedora. Ouvimos o coro público clamando por Ram, aplaudindo, vaiando. Estamos no centro do canal entre ídolo e seu público. E há a música heavy metal do Quiet Riot cerzindo o jogo. No último plano, a trilha é outra, incidental, de Clint Mansell, e também mais dramática, inspirando algo entre dor e gesto final. Nele, o mesmo Randy salta para fora do quadro, assistido por uma câmera em ultra-contra-plongée. O filme termina no quadro escuro total, ausência de imagem. Não há dialética entre essas duas cenas, mas sim a confirmação de que estar vivo é estar na cena, "estar imagem". Logo depois da introdução sobre Randy (os tais cartazes e manchetes de suas lutas), ouvimos uma tosse e vemos, 20 anos depois, um homem curvado, sentado, combalido, quase num outro ângulo do deus da guerra, Marte, pintado por Velásquez: igualmente rendido pelo cansaço pós-batalha. O drama se estabelece, uma vez que estar em cena é algo imperioso, despende esforço – e vida. O plano é aberto, com Randy ali, decaído, mas também bastante presente, firme no estar em cena, o que já estabelece a relação que a câmera terá com ele ao longo do filme: uma relação de respeito, mas, antes, de companheirismo canino.

Ela o acompanhará, na maior parte das vezes por trás, olhando para as suas costas, numa calma em segui-lo em planos alongados, andando por corredores, buscando explicação do proprietário sobre por que não conseguiu entrar em casa, ouvindo uma música no carro após a luta. O tempo discorrido, assunto comentado vez e sempre pelos personagens, está tratado nas imagens, nessa duração mais alongada dos planos, confiantes nos tempos mortos, na captura de detalhes que prenunciam o desgaste (desgaste, que é a evidência da efetivação temporal).
Seguir em frente, à vista de todos e de si próprio – já que a imagem não deixa de ser um espelho do mundo, e de nós próprios –, é estar em cena. Permanecer, isso sim, parece mais complicado. A quem vive da imagem, como Randy, respeitado veterano do telecatch (wrestling) que gastou seu corpo pela glória nos ringues, ou seja, por sua imagem – a pergunta a se fazer é se uma imagem só existe se ela é vista. Não é irrelevante, diante dessa situação, lembrar que esse tipo de luta é uma pura e sofisticada encenação, mas não eximindo seus arenistas de terem seus corpos arrebentados. Fraturas, cortes, pernas amputadas, concussões cerebrais, marcas que timbram o aço das carnes e músculos, enfim, isso surge pelo próprio estar no ringue, permanecer no teatro que pede como moeda o próprio corpo.

O drama de Randy é o drama do cinema. O plano-sequência é uma operação arriscada, que desgasta a própria imagem que está enquadrando, que exige sensibilidade do cineasta, habilidade do operador de câmera. Mais que isso: o plano-sequência tende a ser uma viagem ao incerto, um vôo que pode não pousar elegantemente no aeroporto do corte da montagem. A encenação, também, é outro dado que arranca energias vulcânicas do que está em cena, sobretudo dos atores – dos corpos. Algo fica na cena, seja a própria aparição, seja um suor largado no espaço, seja. Impossível não lembrar, nesse caso, de quando a câmera de Scorsese encaminha-se para as cordas do ringue manchadas do sangue de Jake LaMotta, após tomar uma bela surra de Sugar Ray Robinson em Touro Indomável. Ali, a própria confecção da cena exauriu energias, de equipe, De Niro etc. Randy, enfim, é um cara que resiste ao tempo, reluta em sair da cena, em perder sua imagem. O filme, assim, é infernal na medida em que este homem pendula entre a vida “comum”, anônima, meio banal, e a aclamação luminosa durante as lutas. Mantém a dignidade, mas porque, do outro lado, há o ringue. Assim, um nega o outro, mas também o retroalimenta.

O “The Ram” que surge altivo em seu colan colorido, cabelos longos e oxigenação selvagem, músculos resistindo, lindos, na própria quilometragem avançada de 50 e tantos anos de vida, nada tem a ver com o sujeito de japona rasgada, surdo de um ouvido, com o coração batendo pino, tristeza tatuada no rosto, fazendo bicos num supermercado esdrúxulo. Porém, o Randy arrebentado, brigado com a filha, sem grana e tal é resultado do destemido “The Ram” dos ringues. E “The Ram” chega ao tablado radiante pela justa negação que esse espaço representa, com público aplaudindo, a imagem sendo reconhecida como imagem. Neste pêndulo constante, Randy é um homem das sombras e da luz – e a fotografia confirma isso, explicitamente. Assim sendo, a arena de combate não seria propriamente o ilusionismo. Ela é o “filme”, o cinema, ou seja, a encenação é a realidade em pleno exercício, nos diz esse filme de Darren Aronofsky, diretor formalista que, por motivo enigmático, faz um trabalho que honra o cinema e não se sobrepõe a ele pelo simples autorismo da marca assinada nas imagens. Aronofsky parece recuar para a mesma penumbra que o Randy fora dos ringues habita. Mantém uma coerência interessante, ao interligar o tempo das cenas com o drama do protagonista, que é, sobremaneira, um problema de tempo: o desgaste, em si, não é o problema, é até um jogo aceito, uma moeda de troca justa para o que Randy entende como transcendência. O problema é que essa duração prescreve a repetição, o que aniquilará cedo ou tarde todo o patrimônio do corpo.

Não é diferente com a mulher por quem ele se interessa, a stripper Cassidy (Marisa Tomei), cujo corpo será consumido pelos anos – ou seja, a imagem a ser deliciada perderá o protocolo do público. Estamos num cinema de corpo, extremamente de corpo, e a imagem “roubada” do artista em cena requer maior subtração material que o cinema de culto. Talvez Aronofsky não tenha se dado conta, e isso pouco importa, mas O Lutador é a celebração do cinema físico como aquele que melhor encontra a vida. É uma tese polêmica, haja vista o que cineastas como Godard e Kiarostami também encontram da vida em seus exercícios cinematográficos que não são propriamente “de corpo”. Esse encontro com a vida, assim como ocorre com o “ator” Randy “The Ram”, transfigurado pelo ator Mickey Rourke (e vice-versa), lida com altos riscos, dentro e fora da vida real. No caso, aqui, o “real” é o filme, a encenação, como já sabia John Cassavetes, naquele seu “realismo” que na verdade encontrava a realidade da encenação, e não no resultado da reprodução do que seria real. A morte de Randy, isso é certo, só pode ser afirmada quando o mesmo salta para o extracampo, para o vácuo absoluto do fora do quadro. É um final e tanto, pelo que carrega de comum conosco, num instante supremo em que a imagem conecta tela e espectador pelo que ambos sabem sobre vida e inevitável morte.

Fevereiro de 2009

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