eletrônica
O autor! O autor! - Futebol, imagem e autoria
por Eduardo Valente

Parte II: Zidane, um retrato do século XXI, de Douglas Gordon e Philippe Parreno

Se na parte I desta primeira investigação lançada sobre a construção da imagem de um jogo de futebol tratamos dos autores invisíveis que são os diretores de imagem da TV, iremos aqui ao espectro oposto. Em maio, o escocês Douglas Gordon e o francês Philippe Parreno viveram a experiência autoral máxima: a de apresentar seu longa-metragem Zidane, um retrato do século XXI dentro da seleção oficial (fora de competição) do Festival de Cannes – refúgio maior do autorismo no cinema mundial, onde as estrelas são, antes de tudo, os cineastas. Talvez eles até fossem ofuscados pela presença do próprio Zinedine Zidane na Croisette – só que ele não pôde estar presente, porque já treinava com a equipe francesa para a Copa da Alemanha.

E o que é Zidane, um retrato do século XXI? Sem dúvida uma experiência inovadora: ao longo de uma partida de futebol absolutamente comum dentro do calendário anual do Real Madrid (contra o Villareal, no Campeonato Espanhol), 17 equipes de câmera, capitaneadas pelo renomado fotógrafo de cinema Darius Khondji, seguiram durante os 90 minutos de jogo tão somente os passos de Zidane pelo campo. A idéia a ser reproduzida ao final do longa (que tem 90 minutos de duração – que não são 100% os do jogo, mas os detalhes desta diferença devem ser guardados para a experiência de se ver o filme) é a de acompanhar a experiência de um jogo de futebol profissional, como ela é vivida em 2005 por um jogador (e não um jogador qualquer, mas um dos maiores do mundo).

Curiosamente, o interesse maior de Zidane, um retrato do século XXI está longe de ser exclusivamente dos fãs de futebol, como se poderia imaginar (embora a experiência destes seja provavelmente mais intensa – e mais ainda dos que têm o hábito de jogar futebol). Isso porque o filme sempre se assumiu, mais do que tudo, como um experimento audiovisual (tanto assim que os dois diretores, estreantes em longas, têm no currículo principalmente trabalhos de videoarte e artes visuais). A idéia era de trabalhar o material filmado menos como o registro de uma partida de futebol e muito mais como um mergulho no tempo específico e na expressão pessoal de um determinado trabalhador no cumprimento do seu “dever” semanal de profissão.

Por isso tudo, e principalmente pelo ineditismo da proposta, Zidane, um retrato do século XXI é, sem dúvida, uma experiência marcante, que retira o futebol do seu registro imagético habitual cheio de regras específicas – e, ao fazer isso, nos faz vê-lo como nunca antes havíamos cogitado. O brasileiro reconhecerá aqui e ali, em alguns trabalhos de planos mais fechados e em movimento, algo que lembra o saudoso Canal 100 – assim como os fãs do futebol americano reconhecerão a habilidade de câmeras que lembra os registros da NFL Films (da qual, aliás, vieram algumas das equipes de campo). Mas, é no trabalho do tempo que o filme é realmente inédito, pois ambos os exemplos citados sempre trataram o esporte como espetáculo cinematográfico vibrante. No filme de Gordon e Parreno, um dos aspectos mais reforçados é justamente o do tédio que reina em boa parte do jogo, quando nos damos conta de quão pouco um jogador pode tocar na bola ao longo dos 90 minutos. No meio do filme/jogo, mais de uma vez partilhamos com Zidane uma surpreendente sensação de solidão e introspecção em meio a tantos holofotes e movimentos. Nesse sentido, o jogador escolhido não podia ter sido mais exato, porque o craque francês sempre teve, mesmo na TV e na velocidade do jogo, a aparência de habitar um tempo todo seu, onde o mundo se move em velocidade diferente da sua.

Curiosamente, porém, se há um defeito em Zidane, um retrato do século XXI é o excesso de autoria que seus diretores parecem querer impor ao material. Desde parte do uso da (bela) música original, composta pelos escoceses do grupo Mogwäi, ao insert de legendas que tentam dar vida a alguns pensamentos de Zidane (frases retiradas de entrevistas dele), ao especialmente infeliz momento do intervalo do jogo, onde se busca dar um “sentido maior” ao título do filme, toda vez que o filme foge do que é o seu forte (ou seja, simplesmente registrar o futebol através de um tempo e visualidade nunca vistos), ele se empobrece como espetáculo. É como se o desejo de roubar os holofotes de Zidane e do futebol fosse muito importante para impor a certeza de uma “visão pessoal” – e aqui a oposição entre os papéis dos diretores do filme e dos diretores de imagens de TV faz ainda mais sentido. Enquanto a maior arte dos últimos é seu anonimato, o estrelismo dos primeiros é seu calcanhar de Aquiles.

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