180º, de Eduardo
Vaisman (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
“Este
roteiro é ótimo!”
A boa notícia primeiro: 180º, de fato é
objeto estranho no cinema brasileiro dos anos 2000-2010. Numa
época em que cada vez mais se parece estabelecer que a agenda
do cinema passa pela queda de fronteiras entre ficção e documentário,
poderia-se até dizer que 180º realmente represente
“novos rumos”, no seu abraço desbragado à ficção mais completamente
assumida como tal. Essa crença no mundo diegético como possuidor
pleno de sentidos (ao ponto do Rio de Janeiro como locação
poder virar quase uma abstração, apenas umas luzinhas
fora de foco no fundo de uma janela, ou a vitrine de uma livraria)
poderia certamente ser um gesto poderoso da parte de Eduardo Vaisman
nessa sua estréia em longas. Se não chega a
conseguir se configurar como tal, em grande medida isso se dá
porque, ao quebrar com a “agenda contemporânea”, o filme escolhe
fazê-lo através de um movimento regressivo (como aliás é tão comum
no curso da História – e aí não falamos só da História do Cinema),
que resulta pouco pulsante.
O fato é que 180º parece menos aquele
objeto estranho que nos apresenta (sem que ainda consigamos totalmente
compreender) os próximos passos rumo a um cinema que vem aí em
breve (mesmo que retomando vetores do passado), e mais uma autêntica
cápsula do tempo, que ressurge desenterrada nos trazendo um objeto
direto da virada dos anos 80 para os anos 90. Que fique claro,
porém, que não há nada de intrinsecamente errado com isso, porque
a resignificação dos modelos anteriores pode sempre nos levar
a coisas inesperadas. Mas, de fato, embora 180º apresente
um realizador surpreendentemente maduro no seu domínio de vários
dos aspectos narrativos e técnicos do cinema, o que o filme realmente
faz é tratar 2010 como se nunca tivesse acontecido (audiovisualmente)
todo este espaço de quase 20 anos que já nos separa daquele momento
anterior – principalmente como se não tivessem sido colocadas
às claras uma série de crises de esgotamento dentro daquele cinema
que se propunha então, e que rapidamente envelheceu a partir do
seu frescor inicial. Não há espaço para dúvidas:
já nas primeiras imagens (e sons), 180º indica seu caminho,
tanto no uso da uma trilha sonora hipercalcada em pianos e instrumentos
de sopro, como principalmente ao colocar na tela os créditos que
identificam cada um dos três atores principais diretamente em
relação com a primeira imagem de cada um deles na tela. Nos dois
movimentos, há por um lado um abraço inegável do cinema como espetáculo,
da idéia da ficção como balizadora inconteste da experiência,
mas também um anacronismo que a música ressalta.
Se nesse primeiro momento, a matriz mais próxima parece um certo
cinema do artifício dos anos 80, logo depois entra o aceno principal
ao cinema da virada dos 90 (que, claro, era ele em si uma resignificação
de momentos muito anteriores): a narrativa estruturada toda a
partir de idas e vindas no tempo, do prazer pelo jogo da plantação
de pistas a serem cuidadosamente (e, poderíamos dizer, exaustivamente)
recuperadas uma a uma ao longo da história. Esse prazer quase
obsessivo com a ourivesaria do roteiro é, realmente, o calcanhar
de Aquiles de 180º, porque a partir do momento
em que se estabelece como modelo a ser seguido, passa a tornar
todos os outros aspectos do filme totalmente subservientes a ele.
O que é particularmente uma pena, porque estes outros aspectos,
quando têm um mínimo de respiro na tela, revelam-se os verdadeiros
alicerces de onde o filme poderia tirar toda sua força. Falamos,
por exemplo, de uma direção de atores de extrema segurança, que
apresenta três atores de grande inteligência cênica, e que
parecem entender perfeitamente seus personagens, dando vida a
eles na medida exata da técnica entre a naturalidade (sem naturalismos)
e a construção cuidadosa. Da mesma forma, Vaisman consegue impor
uma gramática de movimentos de câmera, enquadramentos e cortes
que parece extremamente feliz em construir os espaços e deixar
os personagens transitarem nele, num tipo de fluidez narrativa
da ficção cinematográfica realmente pouco comum no Brasil (onde
a norma passa longe desse cinema da invisibilidade do dispositivo).
No entanto, o que realmente impede que 180º
se complete é que tudo isso (personagens, cena, vivências na tela)
está sempre atado aos grilhões de seu desejo da tal “narrativa
em quebra-cabeça”, que para além de sua extrema previsibilidade
(que podia não ser um problema, se consciente de si), se revela
esvaziado justamente porque, uma vez completo, apresenta uma imagem
que não nos parece mais bonita do que as partes isoladas. E aí
é pena que o filme esteja durante tanto tempo fazendo esforço
para que nos interessemos pela montagem do quebra-cabeças, mais
do que pelas peças em si – porque é delas que vêm suas eventuais
fontes de potência. Malu Galli, Eduardo Moscovis e Felipe Abib
conseguem dar a seus personagens uma presença de cena tão interessante
e intrigante que só temos a nos lamentar que estes personagens
em latência estejam na tela tão somente para servirem de peões
para a montagem de uma história que, para além de sua obsessão
por sua própria forma, leva suas figuras a lugares de fato tão
pouco interessantes. Parece um caso típico de um filme que, no
papel, parecia genial, mas na tela deixa a cada passo este “papel
genial” transparecer mais do que aquilo que é realmente vivo e
pulsante: as imagens, e sua interligação. Termina resultando,
assim, numa espécie de “Filme dos Objetos”: idéias para um filme
ainda a ser feito.
Setembro de 2010
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