ensaios
30 fragmentos sobre o cinema (do lugar do espectador)
por Cezar Migliorin

Um filme que coincide com o espectador mata ambos.

Ou um filme é um encontro, ou não é. O resultado do encontro entre o filme e o espectador não pode estar inscrito nem em mim, nem no filme.

Um filme não me transmite uma experiência, ele deve ser a própria experiência.

Na minha poltrona, sou uma dupla testemunha: do que acontece na imagem, do que acontece em mim. O espectador de um filme é um voyeur de si.

Experimentar um filme não é simplesmente ser afetado por ele, por alguma imagem ou texto, mas é ter a experiência que se pode sentir ou pensar. “Ser afetado ao mesmo tempo pela própria receptividade, fazer a experiência em cada pensamento, de uma pura potência de pensar”, como escreveu Agambem.


Um filme não é um ato de comunicação é a invenção de um comunicável. (Jacques Rancière)

Não se pensa nem se sente sozinho. Um monólogo já é uma multidão. Por isso um filme. (Bahktin)

Porque fora do cinema tudo parece andar da esquerda para a direita.

Um filme é sempre um objeto problemático, de outra forma sou excluído.


Quando me identifico com o personagem no cinema não é “no seu lugar” que estou, mas ao seu lado.

O prazer da solidão compartilhada.

Um filme não transmite algo. Não é secretaria eletrônica que passa mensagem.

O espectador é aquele que acompanha a criação de sentido na imagem e se encanta com todos os outros sentidos que não foram propositalmente criados.

Cada filme inventa uma maneira de fazer trabalhar o espectador ao mesmo tempo um filme deve escapar ao espectador; não é o seu filme, é o filme também dos outros espectadores que como ele também estão trabalhando. (André Labarthe)


Um filme é o que me faz entender o que eu já sabia.

Para o espectador há algo na tela que encanta – homens a cavalo, mulheres sedutoras, carros velozes, inteligências concentradas.

O que define um espectador de cinema é que ele não tem acesso a todo o visível. (Jean-Louis Comolli)

Para o espectador há algo na tela que é muito parecido com o que ele conhece na realidade.


“Graças ao cinema podemos ver e rever estes bocados (extratos). Mas, recordar coisas que só em nós viveram, só a memória de cada um pode fazer. E faze-lo não será a melhor maneira de nos dar a conhecer?” Manoel de Oliveira, no filme Porto de minha Infância (2001).

Para o espectador há algo na tela que não passa de pontos de luz e de sombras que se mexem de um lado para o outro.

Ao meu lado alguém sozinho que, como eu, vê a tela. Entre dois espectadores sozinhos em uma sala há uma união que se dá na tela. É o triângulo formado entre eu, a tela e o desconhecido que torna a experiência cinematográfica um ato erótico.

No fundo da sala há uma luz que diz: saída.

Um filme é um objeto que não me leva a fazer nada – o contrário da publicidade.

A interatividade é o fim da liberdade do espectador de poder-nada-fazer e saber que há hora para acabar.


Porque alguma coisa pode acontecer, se não comigo, pelo menos na tela.

A experiência de um filme é sempre a invenção de um “comum”, de um ponto de ligação entre formas de vida distintas. Invenção de linhas de continuidade onde só havia heterogeneidade. Mas a criação destas linhas de continuidade entre os diferentes, mundo-filme e mundo-espectador, não se traduz em consenso entre eles. O filme deve fazer o movimento de ligação - traçar um comum – mas, simultaneamente manter a diferença, guardá-la como riqueza, guarda-la como reserva de potenciais novas linhas, novos filmes, novos espectadores. Por isso, o filme é um objeto paradoxal, aproxima para criar um comum, mas mantém a distância para não apagar diferença. Entre o reconhecimento da relação com a realidade e os pontos e linhas que dançam da esquerda para a direita.


São as imagens que impõe ao espectador um certo uso dos olhos e das orelhas (Gilles Deleuze)

O lugar do espectador é o lugar do compartilhamento. O que se vê e se ouve, o que não se vê e se imagina e que ativa minha « tela mental » (Comolli)

O encontro com um filme dá-se na ativação das memórias voluntária e involuntária. Voluntária porque lembramos de outros filmes, outras histórias, nossas vidas e da do vizinho. Involuntária, porque o filme não diz como ela deve ser acessada e a memória tem seus próprios caminhos e conexões.


 “Assistir um filme é como calçar olhos” (Dominique Noguez)

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As fotos que aparecem neste texto são do trabalho “Theaters” que fotógrafo japonês Hiroshi Sugimoto (1948) desenvolve desde os anos 70, nos Estados Unidos. Para realizar cada foto Sugimoto coloca sua câmera de frente para a tela de cinema e mantém o diafragma aberto durante a totalidade do filme. O que ilumina a sala e os espectadores é a luz de um longa-metragem inteiro.

 “Theaters” está atualmente exposto na Akademie der Künste, em Berlim.

editoria@revistacinetica.com.br

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