400 Contra 1, de Caco Souza (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond

Bandido bom é bandido nosso

400 Contra 1 insere-se em tradição nobre, tão popular e inventiva no cinema brasileiro: a da narrativa sobre crimes e criminosos. Mas o refresco termina logo. No paradoxo de confusão e didatismo, 400 Contra 1 nos incita a parodiar os personagens trancafiados no Instituto Penal Cândido Mendes – o célebre "Caldeirão do Diabo", Ilha Grande, estado do Rio –, correr alucinados e gritar "liberdade!". Evadidos protagonista, roteiro, montagem, público, das mãos sinistras de um artificialismo que remete ao pior de séries norte-americanas – Oz é exemplo irresistível –, longe daquele inferno, talvez pudéssemos recomeçar tudo de novo, olhando uma grande história como ela de fato merece. Frenesi de diluição e ânsia poser chegam a tanto que não há em 400 Contra 1 o mínimo resquício de empatia entre nós e aqueles homens na faixa dos trinta anos, que haviam passado grande parte de suas vidas adultas na cadeia. Não há sequer a dispersiva vitimização do bandido – para evocar, novamente, uma tradição nacional – que poderia ensejar tópicos de debate aqui e ali. O que existe é um aparato de cenas picotadas, momentos soltos, que pretendem dar conta de como a proximidade entre presos comuns e políticos, açodados pelas péssimas condições do cárcere, deu forma ao Comando Vermelho – o CV, sigla onipresente no imaginário carioca a partir dos anos 80.

Ainda que se notem esforços em detalhes – o olhar animalesco e o suor constante dos envolvidos, o bucolismo da mata tropical – não, não estamos na Ilha Grande nem tampouco nos anos 70. Presenciamos uma idealização, um falseamento daquele ambiente sórdido, temperado à influência e à valorização de blaxploitations, wips e subgêneros afins. Fenômeno que nasce com Quentin Tarantino, perpassa com suas idiossincrasias a crítica e se dilui na obsessão de esforços de terceira via como este. O mais curioso é que nenhuma roda precisa ser reinventada. Ela sempre existiu, guardadinha no cânone nacional, parte forjada na mesma época em que o pernambucano William da Silva Lima (Daniel de Oliveira) e sua turma davam expediente no presídio. Acontece que na hora de fazer filmes brasileiros pouca gente se lembra de assistir a filmes brasileiros, e o diálogo com a supracitada tradição se rompe ou se torna tão frágil quanto imprestável. Daí o mal estar de inautenticidade que 400 Contra 1 causa.

O triângulo promíscuo entre estado, cidadão e marginal, bem como a máxima de que o crime no país às vezes iguala a todos, não deixam de estar presente em 400 Contra 1. Principalmente na idéia de que contra uma ditadura que torturava, contra um mecanismo de repressão que servia para calar vozes discordantes, o guerrilheiro e o assaltante de bancos significaram ambos, em breve instância, elementos de provocação e resistência. O que falta é inteligência para reforçar o ânimo de torcermos, literalmente, pelos bandidos. Crápulas inesquecíveis e adoráveis, ao estilo de Lúcio Flávio, Mariel Mariscott ou Zé Pequeno, não seduziram o espectador nacional à toa. O brasileiro tem relação conflitante, algo de amor e repulsa, com seus anti-exemplos. No filme de Caco Souza tal sedução inexiste, e o que fica é um desfile de personagens superficiais, mal forjados e sem brilho. Até as moças – Dra. Carmem Delfim (Branca Messina) e Tereza (Daniela Escobar) –, que poderiam servir de contraponto ao universo monocórdio das falanges, terminam na esparrela do estereótipo – embora a insatisfeita Tereza ganhe pontos por sua agressividade sociopata.   

Na vida real, William, que no alvorecer pós-64 já fazia ponte entre o crime comum e o subversivo, é dessas figuras ambíguas, cujo testemunho – em livro homônimo, que serve de base para a história – diz muito além do que imaginar Dustin Hoffman fugindo da Île du Diable e Harvey Keitel assumindo a dianteira em Mean Streets. Novamente, a dica: uma olhada em Antônio Calmon, República dos Assassinos e outros, traria menos efeitos colaterais do que a repetição de pastiche importado, que há dez anos já soava óbvio. Quem disse que os anos 70 deles foram melhores que os nossos? Mesmo a impressionante resistência no apartamento da Ilha do Governador – vivida em abril de 1981, quando um bandido acuado, poucas armas e quinhentas balas suportaram horas de fuzilaria da PM, comandada pelo famigerado Newton Cerqueira – não arranha o terror que deve ter sido. Em mãos hábeis, tal heroísmo – lenda para o mito do Comando – abriria o filme, prenderia a respiração do espectador e o convidaria para uma reflexão sobre a força e o ódio daqueles infelizes. Corações vivos e fumegantes, muito além da pretensão autoral de um cinema equivocado.

Setembro de 2010

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