4
Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile), de Cristian Mungiu
(Romênia, 2007) por Paulo Santos Lima
Escrita
certa para o texto errado
Ineditismo e originalidade
não são pressupostos para se fazer cinema. Procedimentos atravessam fronteiras,
perpassam cônscio e inconscientemente um cineasta quando ele está decidindo que
gramática utilizará em seu trabalho, são mais algo “oferecido pelo mundo” do que
uma posse privada e exclusiva. Mas quando há uma certa maré alta de experiências
semelhantes, seria melhor que houvesse o “algo a mais”, algo que faça o filme
transcender. Mas o que seria transcender, afinal? Difícil
definir textualmente, mas 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias tem pelo menos duas
tomadas que traduzem o termo. Há algumas outras notáveis, mas, no conjunto, este
premiado longa do romeno Cristian Mungiu parece sofrer da tal banalidade de procedimentos
acima mencionada. As tais duas cenas são planos longos, sem cortes, câmera fixa.
Numa delas, o cara contratado para fazer um aborto em uma universitária (estamos
numa pequena cidade da Romênia de 1987) conversa com ela e amiga de uma forma
extremamente prosaica, meio fria mas de um naturalismo exemplar, respondendo muito
bem ao projeto estético do filme. Na outra, mais “radical”, um enorme plano frontal
do centro de uma mesa de jantar (frontal à protagonista, Otilia, que é a amiga
que presta ajuda à amiga grávida, Gabita) mostra um diálogo banal da família do
namorado da moça. Na conversa, extremamente prosaica, o centro é Otilia, que fica
literalmente no meio do plano, com as duas pontas da janela proseando boçalidades
enquanto ela, desesperada, preocupa-se com a amiga que se restabelece clandestinamente
num quarto de hotel. A extensão do plano, nada artificial (estamos num jantar
de aniversário da sogrona, ou seja, não há nada mais naturalmente prolongado),
potencializa a agonia de uma quase antipática (de tão tensa) Otilia. Há
um punhado de coisas boas neste filme, e uma parece nascer justamente de um de
seus problemas. Dando informações sobre o momento histórico no qual ocorre a história,
o filme convida a conexões sobre algo que está fora dele. Afinal, se o aborto
ainda é proibido no país, por que situar o pequeno drama das mocinhas naqueles
tempos? Parece um caminho fácil para adensar o desalento feminino naquele lugar.
Por outro lado, Mungiu resolve essa sua opção infeliz com imagens, pois veremos
relações humanas tanto esgarçadas, o mercado negro que rola na faculdade e na
porta dos hotéis, o consumismo clandestino, as ruas bastante maltratadas e vazias,
tudo através de imagens captadas por uma câmera que acompanha fielmente sua protagonista. Estamos
num filme que segue a linha dos irmãos Dardenne, mais de Rosetta e menos
de O Filho, naquele “naturalismo do tempo discorrido”, mostrando personagem
maltratado pelo sistema, por essa coisa macro e invisível, quase extradiegética.
Como os belgas, há também um certo julgamento, mas não por entre os personagens,
mas sobretudo pelo filme, que olha de cima, construindo situações meio grosseiras
à sua querida protagonista. Isso está na opção de mostrar o lado mais ignóbil
do médico, que pede, diante do esforço inútil das meninas em honrar a quantia
do pagamento, que elas façam sexo com ele. Sim, ele traça as duas na seqüência,
uma depois da outra, no mais implacável gesto mecânico e significativo (ele, ali,
se faz significante: imagem de todo um sistema que injuria seus cidadãos – e mais
ainda suas cidadãs). Aquele homem que conversou de forma tão prosaica, tão “em
tempo real”, como o trabalho de câmera e montagem pareciam querer construir na
tela, vira um bufão grotesquerie. O
filme, que se mantém praticamente em tempo integral junto à sua Otilia, não filma
o sexo delas. Deveria, no caso, filmar o momento de Otilia, mas prefere a elipse
(raríssima elipse) para depois mostrá-la no reservado, já correndo para a banheira
para se limpar. Mas o filme não nos poupará de mostrar o feto de Gabita, no chão
do banheiro. Tudo bem, a questão do filme é o aborto, em como isso será uma experiência
horrenda para ela, e como, a partir disso, ela terá de tirar de letra, mas o filme
é pudico quanto ao sexo (que é, também, uma imagem medonha, uma vez que o cara
praticamente as violenta) mas não tem pudores em nos presentear com um feto de
quatro meses. Está claro, aqui, que há não poucos gatilhos para se criar sensações.
Não é Vera Drake, de Mike Leigh. Ou, se não é, isso se deve muito à boa
mise-en-scène, passeios de câmera e tal, mas nem tanto pela dramaturgia. Essa
é uma opção estilística sobremaneira perigosa porque camufla outros procedimentos.
Porque o filme julga. E julga impiedosamente. Julga alinhado à sua personagem,
que parece uma mártir, diante de um namorado boçal, sogros que a desdenham (ela
é do interior, o que é um horror para aqueles ali), grosserias de atendentes nos
balcões e, pior, a amiga Gabita, que demonstra uma falta de tato, um egoísmo oceânico.
Otilia faz de tudo, um verdadeiro balé para ajudar a amiga (até sexo forçado ela
enfrenta), e desde sempre ela manterá um olhar tão desiludido quanto superior,
do alto, como se não fosse parte daquilo. Assim, 4 Meses,
3 Semanas e 2 Dias usa vários procedimentos praticados no momento, a maior
parte no cinema feito fora dos Estados Unidos, grosso modo, como a idéia de naturalismo,
seqüências que nem sempre se fecham, pedaços de experiências, idéia de “vida como
ela é”. São opções valiosas, que rendem punhado de filmes primorosos (os Dardenne),
alguns outros minimamente interessantes (os filmes de Tony Gatlif). Mas aqui parecem
apenas uma cartilha adotada para melhorar a caligrafia de um texto que é extremamente
ultrapassado, esgarçado, maniqueísta. Nada contra, mas Mike Leigh, ao menos, na
sua falta de sutileza na bestialização que faz de seus personagens, deixa o jogo
da manipulação mais claro. Um filme que é bom para lembrar algo mais que manjado:
que o plano-sequência também sabe manipular muito bem através daquilo que mostra. Outubro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
|