500 Almas, de Joel Pizzini (Brasil, 2005)
por Lila Foster

Reconstrução pelo cinema

Na língua guató não existe adjetivação. Quando algo precisa ser qualificado, os índios guatós recorrem sempre a ações. Da mesma forma, tentar definir o que é 500 Almas – documentário poético? poesia visual? docudrama? filme etnográfico? – talvez não seja o melhor caminho para dar conta em palavras do primeiro longa-metragem de Joel Pizzini.

500 Almas
também se define por uma ação: a tentativa de reconstrução da cultura guató, uma tribo indígena do Mato Grosso do Sul considerada extinta na década de 60 até a redescoberta de uma população remanescente, porém dispersa. Quem começou a juntar os fragmentos da cultura Guató foi missionária italiana Ada Gambarotto que, trabalhando na região, conseguiu localizar os índios remanescentes espalhados pelo Pantanal. Adair Pimentel, uma lingüista pernambucana, deu continuidade a esse trabalho reconstruindo a língua guató com a ajuda de uma das únicas índias dispostas e relembrar a sua língua de origem. Esses dados são importantes porque essas três mulheres funcionam como elos fundamentais para a reconstrução do passado e a mitologia do povo guató e a condição atual de vida da população remanescente.

Não que exista uma cisão entre esses dois tempos, muito pelo contrário: o filme nunca se aterá a uma temporalidade estável. O passado existe porque alguém deseja lembrá-lo ou quando, mesmo involuntariamente, é atualizado no presente através de falas, imagens, narrativas. É exatamente isso que o filme assume: na fala dos seus entrevistados (uma índia que não quer lembrar da sua língua, mas revela o seu passado no medo de onça); nas fábulas narradas através de leituras de Manoel de Barros e nas lindas imagens dos rios e das florestas; em toda a sua extensa pesquisa histórica; nos vários personagens de Paulo José que distanciam somente para trazer o gesto do soldado, do missionário e do juiz mais carregados ainda de sentido; na lembrança emocionada de um canto; no trabalho silencioso de dois índios que habitam a ilha Ínsul que representa a história de resistência do índio Celso Guató.

Esta rede complexa da memória vai sendo tecida por montagem vertical: som e imagem realizam trocas constantes. A gravação das entrevistas de Adair, na qual a professora pergunta pela palavra em português e a índia responde com o termo na língua guató, surge como um guia para as imagens, sem que nunca uma tenha primazia sobre a outra. Escutar a palavra rio é evocar a importância das águas, das canoas, dos rios para o povo guató. As palavras que vão sendo esquecidas também apontam para as transformações: um cacique que se torna evangélico, as diferentes perspectivas de índios que eram de uma mesma etnia, a inserção das famílias nos arredores das cidades. A língua talvez seja a fonte mais rica de uma cultura porque nela tudo se cruza: um termo é capaz de condensar todo o espírito de um povo e a sua transformação no tempo.

E, assim como não existem adjetivos para os guató, a sua língua também não expressa o possessivo. É possível afirmar que  filme de Joel Pizzini é também um filme de Idê Lacreta (montadora), Mario Carneiro (fotógrafo) e Lívio Tragtenberg (músico) tamanha é a importância do trabalho de cada um. A organização fluída do material bruto deste documentário não poderia acontecer sem a beleza da fotografia e dos enquadramentos e o diálogo constante com a trilha musical e os efeitos sonoros. Existindo ou não um método de trabalho pré-estabelecido, o importante é que cada uma dessas funções cumpre em pequena escala o que o filme realiza como um todo: baseado numa pesquisa extensa de imagens, sons, pessoas e material histórico ele é capaz de informar sem dar diagnósticos e muito menos conferir autoridade para qualquer discurso.

Quando aparecem trechos do filme do Major Thomaz Reis sobre a Comissão Rondon é possível vuslumbrar as belas imagens ali contidas, mas lembrar também do semblante desconcertante de uma índia ao ser vestida. Porque a linguagem do cinema é capaz de espelhar o que é visível, mas também o que subjaz a cada cultura. E 500 Almas é a imagem da beleza e do respeito à complexidade do passado e do presente da cultura guató.

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