5x Favela:
Agora Por Nós Mesmos,
de Cacau Amaral, Cadu Barcellos, Luciana Bezerra, Luciano Vidigal,
Manaíra Carneiro, Rodrigo Felha e Wagner Novais
(Brasil, 2010)
por Fabio Diaz Camarneiro
Críticas
contradições
Os problemas detectados no primeiro
Cinco Vezes Favela já foram exaustivamente repetidos, fazendo
parte hoje de uma espécie de “tradição crítica” do cinema brasileiro:
jovens cineastas de classe média, ao criarem curtas sobre as favelas
cariocas, estariam necessariamente presos aos preconceitos de
sua classe social e colocariam na conta de outras pessoas discursos
que eram deles mesmos. Oscilando entre o didatismo (em seus piores
momentos) e uma busca por um estilo pessoal de seus realizadores
(em seus melhores), Cinco Vezes Favela tornou-se um clássico,
entre outras coisas, por mostrar como pensava o CPC (Centro Popular
de Cultura da UNE, que patrocinou o filme) e por sua importância
num momento de articulação de certo “núcleo duro” do Cinema Novo.
O novo 5x Favela parece querer repensar os problemas do
projeto original. O subtítulo do filme, “agora por nós mesmos”,
acena para o fato de que os realizadores são, agora, oriundos
das próprias comunidades retratadas. Essa escolha traz ganhos,
como a possibilidade de relatos um pouco menos idealizados (ou
simplesmente esquemáticos) do que acontece nas comunidades pobres
de uma cidade complexa como o Rio de Janeiro.
Por outro lado,
se os cineastas de classe média não podiam escapar de seus preconceitos
de classe, os jovens cineastas do novo 5x Favela também
têm sua cota. A história da realização de 5x Favela pode
iluminar alguns pontos sobre suas próprias contradições. A partir
de oficinas de audiovisual em comunidades pobres do Rio, jovens
realizadores criaram os roteiros e foram escolhidos para participar
do longa. Nesse sentido, 5x Favela parece ser a coroação
do trabalho das ONGs que se dedicam ao audiovisual em todo o país
– produção que tem, como vitrine privilegiada, o festival Visões
Periféricas, que ocorre anualmente no Rio de Janeiro. O discurso
dessas ONGs geralmente fala em usar o audiovisual como ferramenta
de inclusão social, aproveitando o relativo barateamento dos custos
de produção, para contar as histórias vivenciadas por classes
sociais que raras vezes tiveram acesso à produção audiovisual.
Evidentemente, muitas dessas organizações desenvolvem trabalhos
sérios. Parece óbvio também que as intenções são elevadas.Mas,
quando um filme como 5x Favela chega ao circuito comercial,
podemos pensar em alguns problemas presentes entre o discurso
e sua prática. Cada época possui suas contradições. No primeiro
Cinco Vezes Favela, havia uma espécie de didatismo revolucionário
querendo ensinar o “povo” a fazer uma revolução política. No novo
5x Favela, existe quase sempre um individualismo que enfrenta
a comunidade. Primeiro, existe uma separação radical entre como
esses cineastas entendem “a favela” e “os moradores”. Os moradores
são sempre vistos de maneira simpática, enquanto “a favela” (ou
o tráfico, a criminalidade) é um problema a ser contornado para
se alcançar um objetivo pessoal (seja um diploma ou uma conquista
amorosa).
Nesse
sentido, 5x Favela não parece tão diferente assim de Cidade
de Deus ou Tropa de Elite. O episódio Concerto para
Violino parece dialogar diretamente com esses filmes, como
se um jovem Capitão Nascimento se aliasse a Zé Pequeno para recuperar
armas roubadas dos militares por uma facção criminosa. Por outro
lado, 5x Favela evita esse discurso da violência e procura
o cotidiano, as pequenas histórias. No episódio Fonte de Renda,
temos um personagem extremamente pragmático, que trabalha com
a cisão entre dois mundos: a favela e o asfalto, a classe pobre
e a classe média. Após um entrecho trágico, o final é redentor.
Mas a conquista do diploma universitário, a princípio, não deveria
resolver os problemas do personagem principal. Apenas um diploma
basta para se apagar um passado? É o único requisito para se entrar
em uma nova classe social? Parece que o filme termina onde os
problemas de seu personagem realmente começam.
Arroz
com Feijão, de maneira muito tênue,
faz lembrar Couro de Gato, ao retratar crianças tentando
se virar (para conseguir dinheiro para comprar um frango). Aqui,
o passado se coloca como um trauma, mas novamente o final é conciliador
(algo totalmente diferente do curta de Joaquim Pedro, que deixava
todas as suas contradições não resolvidas). A estrutura episódica
traz, nesta segunda parte, um dos momentos interessantes de 5x
Favela, quando garotos de classe média assaltam as crianças
pobres. Já Deixa Voar parece mais interessante ao retratar
uma cartografia de bairros dominados por facções criminosas rivais.
Parece
delicado retratar isso em uma cidade que, em seu todo, é uma espécie
de labirinto codificado que apenas seus moradores compreendem
totalmente: algumas ruas são permitidas, outras vetadas, outras
são trafegáveis apenas em alguns horários. Nesse curta, os atores
conseguem uma certa leveza, um certo jeito de mexer os corpos
e de dizer suas falas que fazem o público, talvez pela primeira
vez em 5x Favela, realmente experimentar a vida, os detalhes,
os sotaques, as inflexões dessa comunidade. Alguns diálogos são
pouco inteligíveis, carregados de sotaque, de uma nasalidade,
de uma maneira de falar que não é um retrato feito para o cinema,
mas que parece uma tentativa de se capturar um jeito de falar,
um jeito como os corpos se movem naquele espaço (e o espaço é
tudo nesse curta).
Mas
o mais interessante dos curtas certamente é Acende a Luz,
sobre uma véspera de Natal sem energia elétrica no morro do Vidigal.
Em poucos minutos, de maneira leve, com agilidade, o que vemos
é uma radiografia dos vários tipos humanos da favela: suas relações
amorosas, a cumplicidade entre vizinhos, a agressividade latente
(em determinado momento, cogitam linchar o funcionário da companhia
de energia), sua afetividade. Cada um dos personagens desse episódio
parece mais complexo (e, portanto, menos esquemático), do que
no resto de 5x Favela. É quase como se tivéssemos um afresco,
onde vemos os retratos muito vívidos de pessoas unidas para solucionar
a questão da falta de energia. Novamente, o espaço da favela é
muito bem utilizado, com a visão privilegiada do Vidigal servindo
de contraponto para um verdadeiro labirinto de vielas e escadarias.
E, no final das contas, trata-se disso mesmo: um labirinto em
que, ao invés de deixar uma corda para guiá-lo de volta, Teseu
preferiu brindar o Natal com o Minotauro – que, aliás, de monstruoso
não tinha nada.
O
primeiro Cinco Vezes
Favela foi um dos marcos do Cinema Novo, um movimento que mudou muito sob
o pensamento de Glauber Rocha. Sempre debitário do pensamento
revolucionário soviético, grande admirador de Eisenstein, podemos
resumir parte da colaboração de Glauber para o Cinema Novo citando
a famosa frase do poeta Vladimir Maiakóvski: “sem forma revolucionária
não há arte revolucionária”. A partir de Glauber, o Cinema Novo
foi uma busca incessante não apenas por uma nova realidade política,
mas por uma estética. Em 5x Favela, o que falta, justamente,
é a ousadia estética. Por mais que esses cineastas tragam um novo
olhar sobre o tema da favela e por mais que suas histórias tenham
um certo frescor e algo que podemos chamar de “verdade” (seja
lá o que isso queira dizer), pelo jeito de filmar, o desenvolvimento
das tramas, a montagem que se quer “moderna” (com cortes rápidos,
uso da música), eles parecem por um momento não quererem mais
ser “eles mesmos”, como diz o título, mas um outro.
Não defendemos
aqui um certo primitivismo (sendo pobres, teriam que apresentar
uma linguagem “inculta”). Pelo contrário: livres dos preconceitos
da classe média, talvez pudessem pesquisar uma linguagem audiovisual
mais “suja”, que dialogue com o grafite e com as vielas da favela
do Vidigal; que use os figurinos de maneira mais criativa; um
cinema que não queira ser classe média, que não tenha como objetivo
o tapete vermelho ou a posteridade, mas que traga uma renovação,
um verdadeiro novo olhar. Um cinema que seja “ele mesmo”, ao invés
de tentar emular o outro, o convencional, o aceitável, o corrente,
o dominante. Ou ficamos apenas num cinema de boas intenções, que
tenta retratar coisas positivas da favela, de maneira simpática
a seus personagens – como Helvécio Ratton já fez com seu Uma
Onda no Ar, sobre a Rádio Favela de Belo Horizonte.
Ou talvez toda
essa diatribe seja apenas um reflexo dos preconceitos da classe
social do crítico, que, como todo mundo, não tem como escapar
de suas próprias contradições.
Setembro de 2010
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