À Beira do Caminho, de Breno Silveira (Brasil, 2012)
por Andrea Ormond

Outra vez

Muito podemos lembrar sobre personagens amargurados rendidos por anjos infantis – que tal Lua de Papel (1973) e Central do Brasil (1998)? São uma espécie de lugar comum, estereótipo, vício que consegue extrair lágrimas fáceis. Sabe-se que o adulto imobilizado no "mundo errado" só conseguirá libertar-se através de uma catarse para recontar sua história, seu "eu" neurótico. Então, a criança – pura, tábula rasa – o vê de outra forma. E é esta outra forma, este novo olhar ao outro, que o reinventa, regenera. Ok, mas há limites. Acreditamos na Dora de Central do Brasil não só porque Fernanda Montenegro mexe os pauzinhos, também porque sua transformação não significa um desfecho piamente feliz. Dora viaja do Rio ao Nordeste com Josué – o Brasil é mostrado no apogeu das distâncias imensas –, porém a golpista faz somente uma autocrítica. Era monstruosa, torna-se um pouco humana. Bem provável que, na volta do âmago nacional, reabraçasse seus tristes defeitos. O miúdo Josué seria apenas lembrança doce na existência picareta e mal ajambrada, como aquelas férias de verão que recordamos na rotina soporífera do emprego.

À Beira do Caminho tem pretensões menos sutis envolvendo o bálsamo impúbere. Enfia o pé na jaca da superficialidade emocional, cruza rapidinho todos os sentimentos sem acrescentar nada a nenhum. Não pude deixar de notar aproximação com um dos piores filmes da década de 90: Fica Comigo (1999), de Tizuka Yamasaki. Quase precursor deste cinema comercial que anda em moda hoje; rocamboles levados a sério e contados a toque de caixa. Discursos crescentes de tolerância fomentam o ciclo, criando assim um teto de expressões cada vez mais simplórias e baixas. Lá atrás, Breno Silveira driblou em Dois Filhos de Francisco (2005) justamente esta mão pesada – e nem parecia tanto sorte de principiante. Fato é que no seguinte Era uma Vez (2008) já tínhamos protagonistas querendo fugir para "o Nordeste", tal como a Giselle (1980), de Carlo Mossy, queria voltar para "a Europa". Ah, esses generalismos marotos das pornochanchadas, que soam tão preguiçosos e emburrecedores nas primas sociochanchadas! Verdade que em À Beira do Caminho ilações geográficas não incomodam, são até precisas: João (João Miguel) e o fiel escudeiro Duda (Vinícius Nascimento) chegam a Petrolina. Cidades e estradas pulsam muito além da enrolação, do fetiche substantivo.

Por falar em fetiche, Roberto Carlos ganha aqui seu golpe de misericórdia. Pensávamos que o Rei, no tempo das mulheres pequenas, gordinhas e míopes estava condenado ao ostracismo criativo. Que tinha amarrado a forca no pescoço, exterminando o livro de Paulo César Araújo. Ledo engano. Agora é preciso sofismar aquele passado glorioso, aquela música obsessiva e angustiante dos anos 70. Servindo de trilha na cabine e nas lembranças de João, o gênio de Cachoeiro do Itapemirim ganhou ares de conveniência, reclame demagógico. A porteira do inferno se abriu. Paul McCartney setentão, cantando "Hey Jude" para normalistas e debutantes, é a mesma bad trip, o mesmo horror que colocará "À Distância" entre boleias de cinema desossado.

E se os discos setentistas são para losers úmidos, antigos, saltadores suicidas do edifício Copan, igualmente houve um tempo em que o destino dos provincianos ambiciosos era o Rio de Janeiro, molhando os pés na praia de Copacabana antes de carregarem malas rotas na direção de alguma pensãozinha barata do Catete. O sul, a sorte e a estrada que seduziam eram cariocas. Agora esse imaginário foi quase totalmente transferido, na representação do século XXI, para São Paulo. Acumulam-se na inchada e cansada metrópole, o Brasil foge pra cá. E o destino da dupla (que vira um trio), passa pelo purgatório do sonho paulistano. São aos poucos tomados por uma joie de vivre acachapante, sofrendo revezes na Vila Sônia. Vou arriscar que São Paulo combina mais com taras modernas, inclusive a segregação organizada. João, Duda e as novas classes de marginalizados nunca chegam ao núcleo tradicional do privilégio, nem dão um deslumbrado rolê na Av. Paulista como dariam no calçadão do século XX. Circulam somente nas franjas e das franjas do capitalismo se arranjam.

Antes, João encontra Rosa (Dira Paes), e o que poderia ser prazer verdadeiro, sexo com amor, é epifania confusa. A prostituta vaza, ao invés de ficar batendo palma pra maluco dançar, como diria o falecido Alborghetti. Não fossem todas as assombrações, um on the road que dispensa Dira Paes de antemão já mereceria indelicadezas. O menino funde a cuca de João. É a psicanálise em pessoa, nos assusta. Pulo contar as mumunhas do adulto morgado, quase um zumbi de George A. Romero. Basta dizer que Duda sempre força a barra pra cima do companheiro grande e sempre dá certo. Leva-o ao supracitado limite da felicidade, da reconstrução moral. A questão última é óbvia: pra que tanta mistificação leviana, tanta mediocridade de finais felizes, que alforriem o espectador ainda na saída do shopping? O indício da embromação é o sorriso amarelo na lágrima furtiva, aquela sensação burro quando foge de quem ganhou ou presenteou colonia de farmácia no amigo secreto. Sobram formalismos, faltam sutilezas. Central do Brasil nem era tão maravilhoso assim, cresceu diante de suas diluições (sendo ele mesmo um amálgama de referências). À Beira do Caminho peca não somente por rudimentarizar as sensações, pavlovianamente imitar. Mas, seguindo uma linhagem promissora e ambiciosa, por imitar como se não levasse a inteligência do espectador a sério.

Setembro de 2012

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