in loco - II semana dos realizadores
O Mundo
é Belo, de Luiz Pretti (Brasil, 2010);
Desassossego, direção coletiva
(Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Armadilhas de uma época
A sessão de abertura da II Semana dos Realizadores
se tornou um apanhado de diversos sintomas entre os mais marcantes
de algumas recentes propostas de olhar no cinema brasileiro. Tanto
Desassossego quanto O Mundo é Belo são exemplos
ideais, extremos e acabados dos desdobramentos de alguns projetos
de cinema em curso claro nos últimos anos – projetos que, a propósito,
já renderam frutos bem mais instigantes do que estes. De certa
maneira, os dois filmes pegam algumas terminações marcantes de
seu tempo e redor e levam-nas a um grau quase paródico de acabamento
na exposição, como se ambos pudessem e almejassem totalizar um
processo coletivo de cinema em uma expressão final. Esse clima
de “resumo de época” perpassa ambos os filmes, mas o inventário
encapsulado para o tempo e a história não é dos mais animadores.
O
Mundo é Belo leva ao limite uma série
de questões prementes no cinema brasileiro contemporâneo, especialmente
(mas não só) o de circulação restrita a festivais como essa Semana:
a precariedade como propulsor estético; uma adoração explícita
da plenitude do mundo e da vida; a relação forte com a videoarte;
o cinema em primeira pessoa, minúsculo mas de ambições gigantescas;
um projeto de vídeo espontâneo como saída possível para um cinema
grande e pesado, atravancado por condições de produção irreais
e dispêndio (de dinheiro e energia) que margeiam o impossível.
A cada festival vemos uma nova safra de filmes que compartilham
essa mesma índole. Mas apesar da aparente facilidade sugerida
pelo formato, esse parece ser dos caminhos mais difíceis a se
trilhar ileso: é preciso estar munido de imagens cuja força e
sentido sejam suficientes para saírem íntegros dessa que não deixa
de ser uma jornada de vaidade. Para cada Brakhage ou Jonas Mekas
– sujeitos que escoravam e escoram seu cinema em bases extremamente
pessoais, e ainda assim têm filmes brilhantes e universais – há
centenas de milhares de filmes que reafirmam o senso comum, e
que procuram expressar algo que deveria ser único e intransferível
nos mesmos índices imagéticos de sempre, com os mesmos sentidos
de sempre.
O grande problema de O Mundo é Belo reside
aí. Embora exista, no filme, uma intenção de auto-questionamento
– uma vontade de embarque e de dissolução mística do sujeito,
que é sempre sabotada pela concretude do mundo que pulsa fora
do quadro – seu repertório de imagens é por demais frágil para
carregar a força necessária. Pois se temos planos antológicos
de céu em filmes como Coração de Cristal, de Werner Herzog,
ou Elefante, de Gus Van Sant, é porque em ambos os casos
há uma revitalização estética e semântica do signo que lhe restitui
o impacto da visão original, do signo enquanto tal. À primeira
vista, O Mundo é Belo não tem imagens que consigam superar
minimamente esse desafio – desafio que, nada simples, é inerente
à criação artística, e que se torna ainda maior em obras que dependem
exclusivamente do poder simbólico e plástico das imagens para
produzir sentidos e sensações. Diante da plenitude do inefável,
as imagens de O Mundo é Belo sintomatizam sua própria afasia.
Não
é dilema muito diferente o de Desassossego. Em primeiro
lugar, talvez se fizesse necessário ressalvar a irregularidade
inerente de um projeto dessa dimensão: reunir, como um único e
contínuo longa, 10 curtas assinados por realizadores distintos
em resposta a uma carta-provocação de Felipe Bragança. A ressalva
pede, por sua vez, uma outra ressalva: se Desassossego
é movido pela crença na reunião de um grupo, essa é uma crença
exclusiva do filme e dos seus realizadores, que não se justifica
fora dela. Desfaçamos, portanto, o nó de ressalvas: Desassossego
é o filme que deseja ser – incluindo aí a possível e hipotética
insatisfação de um ou outro diretor com o todo do qual seu filme
(seu todo – evocando o jogo semântico de Ao Braço do Mesmo
Menino Jesus quanto Appareceo, de Gregório de Matos) se tornou
parte – e sua irregularidade não deixa de ser um problema grave
por ser parte de um projeto calcado na irregularidade. À “carta
do desassossego”, os 14 diretores responderam com filmes que foram
reunidos por Bragança e Marina Meliande, e conectados por vinhetas
– visuais e textuais – que emendariam os frangalhos. Os curtas
ganham estatuto de fragmento – que podem ir do narrativo mais
direto (o musical sci-fi meio quirky de Marco Dutra
e Juliana Rojas) ao puro referencial (o episódio à Mal dos
Trópicos de Felipe Bragança), passando pelo assombro bruto
(o de Ivo Lopes Araújo) e o filme de afirmação de um procedimento
(o de Leonardo Levis e Raphael Mesquita) – e são amarrados em
um caleidoscópio uno, cuja referência mais próxima e ideal talvez
seja o primoroso Império dos Sonhos, de David Lynch.
A
diferença radical é que Lynch estilhaçava o uno, enquanto Desassossego
tenta criar o uno a partir dos estilhaços: um, filme de pesadelo;
outro, filme de faz-de-conta. Há, aí, um problema grave. Grave
por, em primeiro lugar, as vinhetas dirigidas por Felipe Bragança
e Marina Meliande contaminarem os fragmentos com uma dose cavalar
de doçura, em uma alegria poética, posada e carnavalesca que determina
um sentido “uno” muito diferente daquele alcançado pelos dois
diretores em A Fuga da Mulher-Gorila. Pois embora
o traço estilístico seja o mesmo – um mesmo gosto pelo jogo de
palavras, uma busca não-naturalista pela expressão do íntimo,
um interesse acentuado pelo universo jovem feminino – em
A Fuga da Mulher-Gorila ele era
contraposto a uma brutalidade de encenação que, pelo contraste,
gerava um outro sentido. Nas vinhetas posadas de Desassossego,
essa poética da dupla de diretores revela uma fragilidade imensa,
pois o artificialismo consciente das cenas e do texto revelam
o artificialismo dos sentimentos que deveriam – queremos crer
– trazer algo de genuíno e íntimo ao conjunto de filmes. O que
acentuava o gosto pelo artifício e pela criação em A Fuga da Mulher
Gorila aqui parece somente denunciar sua própria falsidade.
Assim como em O Mundo é Belo,
a iconografia busca sentido onde se espera encontrá-los – algo
mais gritante no episódio de Carolina Durão e Andrea Capella,
que vai ao parque de diversões buscar a mesma beleza plástica
e a mesma previsibilidade de sentidos que partiam A Montanha
Mágica, de Petrus Cariry. As luzes de natal, o mar, o armário
velho, as explosões – tudo isso vem como índice textual de um
arroubo de violência que o filme apenas tematiza, e que nunca
consegue transformar em matéria estética. Fala-se de explodir
um mundo, mas nunca vemos determinação suficiente para se explodir
o filme. Bradando do alto da falsa segurança de uma torre de açúcar,
Desassossego é um filme inquietantemente sossegado.
Essa doçura deliberada acaba por determinar a
maneira de se olhar para todos os filmes do conjunto, neutralizando
as perceptíveis diferenças entre as partes em um mesmo melado.
A força inicial do episódio de Helvécio Marins Jr. e Clarissa
Campolina (o melhor do conjunto, talvez até por ser o primeiro)
vai se diluindo progressivamente no todo, engendrando os picos
isolados de interesse em uma lógica bastante estranha, que parece
fazer um esforço incomum para enxergar doçura e alegria em tudo
e todos. Que isso se dê em um filme sobre o universo jovem é ainda
mais sintomático, pois a juventude não existe sem seu próprio
conflito – aquele que se dá entre a infância e a vida adulta,
mas também que se reproduz em toda uma relação que é apaixonada,
decerto, mas também atribulada e violenta com o mundo e com o
próprio eu. Desassossego, nesse sentido, se torna estranhamente
parecido com 5xFavela – Agora por Nós Mesmos, filme onde
a suposta multiplicidade sai pela culatra, pois todas as partes
dizem a mesma coisa (mesmo que uma diga melhor que as outras),
e compartilham a mesma necessidade de neutralizar tudo que pareça
agressivo pela manutenção de uma relação que idealiza e aliena
o sujeito do mundo. Os jovens já puderam mais.
Setembro de 2010
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