O Aborto dos Outros, de Carla Gallo (Brasil, 2008)
por Ilana Feldman

O lado dos outros

Para além do debate político-institucional, da origem da vida à descriminalização do aborto, o tema da gravidez indesejada ou precoce está na agenda do cinema contemporâneo. Do romeno 4 meses, 3 semanas e 2 dias, premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2007, ao norte-americano Juno, de Jason Reitman, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro em 2008, a temática da vida – em seu direito de não nascer e até de morrer – dá forma mais do que nunca a inquietações diversas, em igualmente diversas aproximações. Em O aborto dos outros, documentário de Carla Gallo, a aproximação observacional, enquanto coluna vertebral do filme, estrutura uma narrativa em busca de narra-dores, alternando esse eixo observacional, cuja observação não-ortodoxa permite a interação com figuras secundárias, a entrevistas mais curtas, em certa medida funcionais, cujo intuito é a circunscrição de um panorama: o problema do abortamento, seja legal ou clandestino, no Brasil, e, em especial, na cidade de São Paulo.

No eixo observacional, temos, logo na primeira seqüência do filme, uma menina de 14 anos respondendo ao questionário de uma doce e paciente psicóloga em um hospital público da cidade de São Paulo. Personagem sem nome e sem rosto, esta menina, personagem-corpo, fora estuprada a caminho da escola, engravidou e agora procura fazer valer seu direito de não gerar uma criança filha de uma violência e de um trauma. Violência e trauma que a precoce mãe também terá de suportar. Pautada pelo sentido de experiência, de apreensão e de duração, a atenta observação do corpo dessa menina – um corpo fragmentado por belíssimos planos próximos de mãos, nuca, costas, pernas, cabelo, brincos, pele e pequenos gestos – efetiva uma aproximação que, com o zelo necessário, transpõe a mediação da instituição hospitalar e de seus aparatos. Logo na primeira seqüência, a câmera transpõe uma parede de vidro opaco, deixando o branco desta parede, de onde emerge o título do filme, para passar ao outro lado: o lado em que funciona, em um confinado espaço, o atendimento psicológico. O lado dos outros.

Diferentemente de Hospital, um dos clássicos do cinema observacional de Frederick Wiseman (1969), em O Aborto dos Outros o foco não está na instituição, nem nas relações sistêmicas que ensejam determinada prática social, mas nos corpos fragmentados de tantas mulheres que tiveram de recorrer à prática do aborto: corpos divididos, esquadrinhados e repartidos, corpos “fracassados”, seja pela culpa e pela dor, pelo saber médico e institucional ou, ainda, e sobretudo, pela limitação desde o início imposta ao filme. Marcada pela prerrogativa do anonimato, em que a revelação da identidade e, em alguns casos, do rosto é interditada para proteger mulheres que são consideradas “criminosas”, menores de idade ou ameaçadas, a construção visual de O Aborto dos Outros faz com que uma situação-limite seja efetivada, na linguagem, por planos-limítrofe, por meio dos quais os enquadramentos produzem um efeito de confinamento. Corpos sem rosto, semi-perfis, super-close em um olho, mãos apertadas, gestos nervosos e, até, voz em off sobre a imagem de uma torneira gotejante, em que, a cada filho abortado, cai uma gota.

Além de acompanhar o processo para a realização e êxito do aborto da menina de 14 anos, cuja apreensão vai se tornando exasperante (assim como acontece com a personagem Gabita, de 4 meses...), o filme entremeia esse acompanhamento a testemunhos de cinco mulheres. Há aquela que precisou abortar legalmente por má formação do feto; outra que abortou clandestinamente o fruto de uma chantagem do ex-marido; mais uma que abortou por estupro, quando casada e mãe de três filhos; uma que abortou cinco vezes, pelas mãos de uma “mãe de anjo”; e outra ainda que, por ausência de condições financeiras e pelas próprias mãos, abortou, teve hemorragia e, quando internada, fora denunciada e algemada sobre a própria cama hospitalar, e, de lá, ainda não recuperada, presa em uma cela de uma delegacia, conforme nos conta em um breve depoimento, como os demais.

Ilustração de casos? Em parte sim. À exceção do eixo mais observacional, cujo tempo dos planos, em função da construção de uma dinâmica narrativa marcada pela tensão dramática, e cujo rigor dos enquadramentos, que produzem uma espécie de silente solidariedade e um efeito de poesia combinado com asfixia, as falas dessas mulheres vêm confirmar a expectativa de um panorama temático pré-concebido, funcionalizando as experiências narradas. Deixamos assim de acompanhar testemunhos para ouvirmos depoimentos. Nesses casos, temos o lado dos outros exposto na tela, mas não temos o filme ao lado desse mesmos outros. Aqui, tanto a câmera como a montagem parecem reafirmar a mediação institucional, a distância e, no mais das vezes, a posição social e simbólica do discurso da vitimização.

Neste ponto, e no último terço do filme, o acompanhamento do drama da menina sem rosto e os depoimentos das mulheres anônimas dão lugar, abrupta e equivocadamente, a uma série de rápidas e objetivas falas de uma plêiade de homens do saber, de “cabeças falantes” – essas sim munidas de rosto, identidade e profissão, como um médico, um juiz, um obstetra, e assim por diante. Homens dotados de importância e legitimação social, cuja utilização pela montagem de seus discursos em defesa da descriminalização do aborto quer legitimar não apenas a postura política do filme como a experiência de suas personagens, como se as pequenas e grandes tragédias de suas vidas necessitassem de uma instância legitimadora externa que não a própria e desesperada necessidade pessoal.

Desprovidas de sentido narrativo, e redundantes, as falas médicas, legais e institucionais acabam por desacreditar, na lógica diegética do filme, a força da experiência das personagens, por si só fruto da absurda criminalização penal em que se encontra a prática do aborto, situação, como a da mulher presa ainda sangrando em uma cama de hospital, que prescinde de quaisquer discursos explicitamente engajados para explicá-la ou atacá-la. Tais discursos, cujo sentido é apenas estritamente político, mas, enquanto postura política, pouco problematizadora e, até, redutora, no limite desacreditam a força do próprio filme, como se realidade não fosse suficiente, como se o gritar interior dessas mulheres não fosse audível.

Com isso, não se está aqui, evidentemente, interditando dogmaticamente filmes militantes, pelo contrário. O problema é quando o filme, aparentemente mais por descrença de sua proposta inicial do que por engajamento, precisa de uma legitimação que lhe seja exterior. Antes de militar por um ideal político, O Aborto dos Outros seria mais potente politicamente se militasse convictamente pela expressão estética da vida, para que, como já dissera Deleuze sobre o cinema do John Cassavetes, os personagens não passem para o lado da câmera sem que a câmera tenha passado para o lado dos personagens.

Abril de 2008

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