in loco - cobertura dos festivais
Abrir Puertas y Ventanas, de Milagros
Mumenthaler (Argentina, 2011); e
Viola, de Matias Piñeiro (Argentina, 2012)
por Filipe Furtado
Cinemas e cinemas nacionais
Nada pode ser pior para um cinema nacional do que tornar-se
um gênero. Os aparentes ganhos com financiamento internacional
e seleções nos principais festivais são contrapostos
por uma asfixia que domina todos os filmes, com exceção
daqueles poucos dotados de personalidade o suficiente para resistir
a todas as facilidades pré-aprovadas (pensemos na calcificação
do cinema romeno ao longo dos últimos anos). Essa é
uma questão muito perceptível no cinema argentino
recente, com filmes como O Guardião (Rodrigo Moreno),
La Rabia (Albertina Carri) ou O Outro (Ariel
Rotter) se revelando quase intercambiáveis na sua
aderência ao mesmos dois ou três procedimentos consagrados
da produção. Mesmo um filme um pouco superior, como
Las Acácias, jamais consegue ser tão arejado
quando deseja, com a sombra do gênero "cinema argentino"
sempre pronto a tomar conta dele.
Logo não surpreende que o mais vital filme local dos últimos
anos, Histórias Extraordinárias de Mariano
Llinãs, seja intencionalmente um filme contra a produção
local, tanto nos seus modos de produção como sobretudo
num desejo de retorno ao prazer da construção ficcional
que existe muito distante do misto de minimalismo, trabalho de
instalação em espaços e jogos de autoficção
que cineastas como Lucrecia Martel e Lisandro Alonso terminaram
por definir para a produção da última década.
Histórias Extraordinárias, por conta da
sua duração de pouco mais de quatro horas, não
circulou fora do país com a mesma frequência que
outros filmes argentinos marcantes, mas seu impacto local é
notável (de fato, eu estava em Buenos Aires quando da primeira
exibição do filme e “você já
viu Histórias Extraordinárias?” e
“você precisa ver Histórias Extraordinarias!”
eram as duas frases que mais ouvi de críticos e cinéfilos
mais interessados na produção local). A influência
do desejo de Lliñas de retomar outra relação
com a ficção é muito forte no trabalho de
alguns jovens cineastas locais, assim como a constatação
de que a rarefação de boa parte da produção
do país podia cair ao gosto de muitos curadores e agentes
de vendas internacionais, mas apontava para uma asfixia estética
cada vez mais acentuada.
É uma ideia muito visível nos filmes de Matias Piñeiro
(cujo belo longa de estréia, El Hombre Robado, foi
lançado à época do filme de Lliñas)
e está no primeiro plano em Abrir Puertas y Ventanas,
primeiro filme de Milagros Mumenthaler (que venceu o Festival
de Locarno do ano passado). No caso de Piñeiro, trata-se
de uma recusa completa, construindo um universo particular com
ideias de narrativa, ritmo e performances muito próprias.
Já no filme de Mumenthaler, a crise está inscrita
em cada um dos seus planos, com um dialogo tão constante
com a produção local quanto a recusa total que vemos
em Viola.
Num
primeiro momento, Abrir Puertas y Ventanas (foto) sugere
o mais genérico dos filmes: a diretora cuidadosamente nos
instala em uma casa com três irmãs que perderam recentemente
a avó que as criou. Nada acontece, aparte as ocasionais
visitas dos namorados e algumas discussões entre as irmãs.
Nossa primeira impressão é de que Milagros Mumenthaler
é uma estudante aplicada: seu filme é muito hábil
em encontrar um peso no local que sugere toda uma história
pregressa presente ali, em animar objetos de cena e em enfatizar
as portas e janelas do título original, assim como em trabalhar
com sons para sugerir um universo externo ao das irmãs.
Abrir Puertas y Ventanas coloca tudo no seu devido lugar,
mas nada neste começo é promissor. Com o tempo,
porém, a concentração com que Mumenthaler
desdobra suas três irmãs revela aos poucos um filme
mais envolvente do que sua descrição e cenas iniciais
sugerem. O que está em jogo é um desejo da cineasta,
em parceria completa com suas três excelentes atrizes centrais
(Maria Canale, Martina Juncadella e Aillin Salas), de partir da
opacidade que frequentemente domina as ficções locais
e trabalhar dentro dela até localizar um sentimento de
drama claro e especifico.
Um
pouco disso nasce naturalmente do simples trabalho de preencher
o comportamento das suas personagens: Mumenthaler é ainda
mais hábil com explosões abruptas de crueldade e
mesquinharia do que com sua exploração da casa.
Há algo muito envolvente na maneira com que Abrir Puertas
y Ventanas se move após suas cenas iniciais, na forma
como o filme trabalha de sorte a localizar dramas no seu aparente
marasmo e deixar com que eles respirem. É um procedimento
que recomeça e pára múltiplas vezes, mas
que mantém-no constantemente intrigante. Os momentos em
que Abrir Puertas y Ventanas repotencializa sua dramaturgia
são sempre excitantes a ponto de a espera por eles reservar
interesse (ajuda muito nisso que as atrizes segurem a ação
mesmo quando sua ficção repousa). O filme, inclusive,
consegue tornar boa parte dos momentos em que intencionalmente
obscurece informações em algo essencial na sua construção
dramática, e não na afetação habitual.
Mumenthaler às vezes se vicia demais em alguns dos seus
movimentos favoritos (há decerto um excesso no uso formal
de portas) e algumas soluções fáceis demais
(seu desenlace, por exemplo, sugere mais uma necessidade de parada
abrupta do que um ponto final). Algumas das irregularidades de
Abrir Puertas y Ventanas são intencionais, enquanto
outras apenas sugerem certo entusiasmo excessivo, mas o sentimento
dramático que o filme nos seus melhores momentos atinge
faz justificar as sugestões de Chekov que o uso de três
irmãs inevitavelmente convida.
Em Viola, nada disso se apresenta sequer como questão.
Matias Piñeiro não poderia estar menos preocupado
com os cacoetes do cinema local, já que este sequer existe
para ele. Um filme ainda mais de atrizes do que já era
Abrir Puertas y Ventanas, Viola chega até
nós através de longos planos de superfície,
focados totalmente sobre os rostos das suas protagonistas. Cada
sequência é perfeitamente calibrada dentro da sua
dramaturgia, inevitavelmente se dissolvendo na próxima,
com um ritmo calcado muito mais numa lógica musical do
que por qualquer urgência dramática. Há uma
montagem teatral que combina múltiplos textos de Shakespeare
(mas sobretudo “Noite de Reis”) e esta jovem também
chamada Viola que trabalha vendendo DVDs piratas, e que a certa
altura cruzara com o elenco da peça e receberá um
convite para eventualmente substituir uma das suas atrizes.
Que
atrizes sejam frequentemente substituídas é, assim
como a fluidez da identidade sexual no texto original, central
para o conceito de performance que tanto fascina o filme. Podemos
dizer que Viola se preocupa em mover a câmera de
Piñeiro de uma performance (a peça) até outra
(Viola e seu namorado a ensaiar uma canção), e minar
cada momento entre elas de todas as suas possibilidades. Viola
tem uma duração pouco usual (65 minutos) e se Piñeiro
não faz nenhum esforço para arrasta-lo até
os 70 minutos de hábito do longa-metragem é porque
a construção exploratória dos seus blocos
sugere que o filme poderia facilmente ter quarenta minutos ou
três horas, dependendo de para onde eles nos levassem.
Apesar das suas sensibilidades não poderem estar mais distantes,
Viola traz à mente os últimos filmes de
Howard Hawks, com quem divide uma mesma ideia de prazer cinematográfico.
Como Jonathan Rosenbaum observou certa vez, Hawks é um
artista que trabalha de forma muito mais próxima ao de
um bandleader de jazz, como Duke Ellington, do que da
ideia habitual de autor de cinema. Podemos dizer o mesmo de Matias
Piñeiro. Assim como as melhores peças de jazz comunicam
principalmente o prazer de uma série de músicos
em trabalharem uns a partir dos outros, Viola frequentemente
sugere que Piñeiro apenas conspirou para criar situações
que permitam que seus atores e técnicos trabalhem juntos
e o filme é intoxicado pelo mesmo sentimento de descoberta
(não por acidente, Piñeiro, assim como Hawks, procura
trabalhar sempre com o mesmo grupo de colaboradores). Cada um
dos seus blocos pode facilmente ser visto como um número
separado, dotado de suas intensidades e lógicas próprias,
com o texto de “Noite de Reis” ecoado naturalmente
ao longo, servindo como uma tênue união temática.
Viola é um filme fascinado por papéis e
a forma como se entra e sai deles, assim como pela maneira com
que o grupo cria naturalmente suas ficções. Esta
construção musical faz com que ele mantenha uma
leveza e graça bem particulares. Piñeiro é
sempre pronto para trabalhar a partir de cada uma das situações,
explorando-as em busca de novas configurações.
Viola
se passa num meio boêmio de Buenos Aires que a produção
argentina como um todo (e principalmente sua parcela “para
festivais”) raramente procura retratar. Apesar do meio e
da presença constante do texto de Shakespeare, diz muito
sobre as qualidades do filme que ele jamais traia o tipo de aflição
cultural que equivale alta arte com ascensão social (chamem-no
de “complexo de Woody Allen”) que com tanta frequência
domina filmes similares. O filme se instala ali porque é
um universo que seu cineasta conhece e adora e também porque
ele serve perfeitamente ao intercâmbio entre desejo e performance
que é tão central ao filme. É uma idéia
que também aparece com força em “Noite de
Reis” e que move boa parte das ações aqui.
Não é por nada que começamos no teatro e
terminamos com a música, e que Viola trate estas
performances da mesma maneira.
Numa das muitas grandes sequências do filme, uma porta de
carro se abre para que uma nova personagem entre. O clima do lado
de fora se revela muito mais tempestuoso do que se sugeriria –
simplesmente mais um elemento de cena fugidio em constante transformação.
Tudo no mundo de Viola segue o mesmo princípio,
num movimento constante de renovação, com atores,
cenários e situações simplesmente se alterando
a cada instante. Cada novo personagem, cada nova situação
é apenas uma peça a mais na tapeçaria do
filme, prontos para jogar uns contra os outros. Viola
é esta constante redescoberta e a arte de Piñeiro
é repartir ela conosco. É um filme de completa liberdade
e, se Viola existe completamente à parte da asfixia
da produção local, é porque Matias Piñeiro
ambiciona pertencer ao cinema e não ao cinema argentino.
Outubro de 2012
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