Acácio, de Marília
Rocha (Brasil, 2008)
por Cléber
Eduardo Entre
o video e o Super-8
Primeiro plano: enquanto vemos
uma paisagem verde, vegetação e montanhas, que nos induzem a uma “interioridade
geográfica”, a um deslocamento rumo ao “arcaico”, ao antigo, ouvimos a apresentação
da narradora. É a instância autoral de Acácio, que, nessa introdução, explica
as motivações do documentário, sempre com um tom distante e formal, com gravidade
poética e dramática. As motivações estão concentradas no personagem-título, Acácio,
e em sua esposa, Conceição, ambos imigrantes portugueses de idade avançada, moradores
de Betim, na Grande Belo Horizonte, que, durante o período em que viveram em Angola
e Portugal, registraram muitas situações em Super-8: amigos, o movimento nas ruas,
rituais. Registrar a mediação da memória desse casal por
meio de imagens do passado parece ser o primeiro movimento de Acácio. O
segundo será interferir nessa mediação e se propor como mais uma camada de interação.
Temos assim as imagens silenciosas de Acácio (o personagem), a interação de sua
esposa com essas imagens, as imagens contemporâneas dos lugares onde moravam (captadas
para o filme) e a voz da narradora, com suas frases sobre os personagens e seus
entornos no passado. Cada uma dessas operações de memória e presentificação do
passado chega a nós sem acúmulos e simultaneidades: uma mediação de cada vez.
Quando vemos as imagens em Super 8, nada ouvimos, mas, momentos depois, vemos
e ouvimos o casal reagindo às imagens exibidas antes. O mesmo se dá com as imagens
em vídeo captadas pelo filme em Portugal e Angola. Vemos as pessoas e os espaços,
depois ouvimos como o casal vê essas imagens. Não haveria algo de Bresson nessa
operação? Não o Bresson cineasta, mas o Bresson de Anotações do Cinematógrafo,
sua bússula conceitual de procedimentos, segundo a qual som e imagem não devem
competir. Há sim, mas, antes, há Lumière: o movimento no silêncio, o registro
de instantes de intimidade, no privado ou ao ar livre. Talvez
possamos pensar as relações entre as imagens em Super-8 do passado e as imagens
em vídeo do presente para além das diferenças de tecnologia e de textura. Pensar
como cada uma dessas máquinas, a de Super-8 e a de vídeo, são também marcas de
tempos históricos distintos, cada qual com seus registros íntimos, com o cultivo
do embalsamamento de momentos – para tomarmos a idéia de André Bazin sobre a fotografia
e o cinema como prolongamento de um tempo já passado, que adia sua morte por meio
de uma imagem à semelhança do já vivido. A imagem amplia a vida de instantes,
como se acreditava na cultura egípcia, mas há, entre o vídeo e o Super-8, uma
diferença na imagem. Se o cinema é mais centrífugo que a fotografia, com a extensão
dos movimentos transbordando o enquadramento, o vídeo é mais centrípeto que o
Super-8, pois, em Acácio, sua utilização é de quase congelamento do quadro.
Não congela e não aprisiona Acácio e sua mulher porque,
quando eles reagem ao movimento do Super-8 e da memória, o quadro, apesar de se
manter rígido, é habitado por mobilidade e fluxos multidirecionais. No entanto,
não seria esse estímulo, vindo do Super-8, uma confirmação da suposição? Por mais
subjetiva que possa parecer a afirmação, o Super-8, por seu jogo de contrastes
e por seu silêncio, mas também por sua defasagem como tecnologia de imagem (sem
som), nos remete com mais força a uma estética da memória e do embalsamamento,
convertendo em poesia o material justamente por produzir uma mimese estilizada
em si mesma. O vídeo parece menos cheio de vida em sua textura, por mais que se
possa manipulá-la, como se faltasse algo em sua imagem e contivesse um excesso
(o som). Não
poderia ser mais coerente esse jogo em Acácio. A poesia está toda concentrada
nas imagens do passado em Super-8, imagens com rastros de outro tempo (e de outras
culturas e lugares, nesse caso), enquanto o vídeo serve-nos ali como testemunha
do presente. Se não existe necessariamente uma hierarquia entre os dois registros,
o da poesia e o do testemunho, é porque na interação com o casal, e do casal,
surgem momentos de intenso frescor e vitalidade, ambos muito à vontade, apesar
da aparente composição dura do enquadramento para mostrá-los diante da tela do
micro onde assistem às imagens. Talvez seja o que Acácio traz do casal,
não do passado, mas no presente, que faça dessas imagens em vídeo um registro
de vida, de prosseguimento, de vitalidade, pulsação e mobilidade, mostrando-nos
como a memória está em movimento – mas também o casal e seu casamento, com a intimidade
de ambos ultrapassando pudores e composições endurecidas, com um gracejo dele
gerando o riso dela, com uma afirmação dela produzindo uma delicada repreensão
da parte dele. E por que há algo em Acácio que parece
alheio à poesia da experiência, do fenômeno, do existencial? Por que em um material
tão caloroso parece haver algo de frio a querer nos manter distantes daqueles
personagens e de suas memórias? Pode-se arriscar afirmar que esse bloqueio das
emoções está na estratégia da narração, ou ao menos na narração da narradora,
que, se nos remete ao Santiago, de João Moreira Salles, não tem o mesmo
efeito de luto autobiográfico terceirizado para outra voz (a do irmão). Essa operação
de distanciamento (involuntário?) talvez aconteça porque, em vez de assumir uma
subjetividade do processo (uma primeira pessoa mais escancarada da instância narrativa),
Acácio procure objetivar essa subjetividade, sobretudo quando comenta a
situação da guerra civil em Angola, sobretudo quando fala em representação de
país. Não se trata de representação, de forma alguma, mas de aproximação, ou de
intermediação de um retorno terceirizado – no lugar do casal, que não mais voltou
a Angola e Portugal. Não se trata de buscar uma imagem-síntese ou uma imagem
explicativa de um acontecimento ou de um contexto, mas imagens de presenças naqueles
espaços e de observações de gestos e pessoas. Se a narração
parece domar o movimento às vezes selvagem da memória e do esquecimento, da confusão
e da idealização, as imagens e os depoimentos repõem o fluxo em suas curvas, sem
as retas buscadas pela intervenção verbal da instância narrativa e autoral. As
imagens registradas por seu Acácio e de seu Acácio e a esposa trazem na experiência
pessoal algo do processo histórico e coletivo, menos para situar os personagens
no contexto político (a colonização portuguesa em Angola), mais porque nos quebra
os estereótipos para mostrar, por meio de um olhar respeitoso e afetivo das filmagens
de seu Acácio, os angolanos em rituais e em gestos cotidianos, cuja beleza da
aproximação não deixa nada a desejar aos momentos mais fortes de Jean Rouch na
África. Sim, seu Acácio, um cineasta entre Renoir e Rouch. Acácio
é parte de uma forte tendência dos documentários brasileiros contemporâneos, de
curta e de longa metragem, por trabalhar com personagens únicos (mesmo sendo um
casal, mas um único casal, e um casal único), personagens por sua vez com algo
a nos mostrar a partir de uma experiência no passado (memória). Acácio
se insere na pauta da singularidade e da experiência inigualável, da busca do
extraordinário de pessoas comuns, do qual fazem parte desde Santiago até Estamira,
cada qual com suas propriedades cinematográficas. É o momento histórico da individualização,
se não em personagens solos, como Alma do Osso, de Cao Guimarães, ao menos
como indivíduos acima de seus meios e de seus contextos – mesmo se não forem os
únicos no filme, como em O Andarilho, do mesmo Cao Guimarães. Há,
porém, um porém. Acácio é híbrido nesse sentido, o da tendência do personagem
único, porque, procura, sim, o que está além do indivíduo – e, no entanto, esse
é seu ponto mais frágil. Também assume a voz do autor, não mais como voz do saber,
mas como voz de quem está no processo, embora com uma visão final desse mesmo
processo. O que se está a afirmar, em suma, é que, justamente quando sai da tendência
da individualização e da retirada da posição narradora no documentário brasileiro
dos últimos anos, Acácio parece ameaçar sua própria força. Em um filme
aparentemente do menos, no sentido da intensidade dos procedimentos, Acácio
talvez sofra do mais, do excesso, seja o excesso do acréscimo à experiência de
um homem e de uma mulher em diferentes lugares, seja o excesso de contenção para
não aderir demais à beleza dos seres diante da lente. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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