in loco - cobertura dos festivais
A Cidade É uma Só?, de Adirley Queirós (Brasil, 2011)
por
Fabian Cantieri
Olhar
crítico
Existe
uma dicotomia clara em A Cidade É uma Só?.
O filme navega sobre a trajetória de três personagens:
uma figura-figuraça que se diz do povo e tenta
sua primeira eleição distrital; um homem no comércio
de lotes brasilienses irregulares; e uma terceira personagem que
contextualiza a Campanha de Erradicação de Invasões
(CEI). Esta última, única de fato verídica,
é a que impõe a divisão recorrente entre
a mente inventiva do diretor e sua investigação
dos fatos. A transparência está mais no jogo de interesses
para extrair o máximo do tema, pautado pelo desenvolvimento
dos personagens criados, do que nessa confluência que se
faz bem disfarçada entre dois universos sobrepostos.
A Cidade É uma Só? se atém ao momento
ulterior ao da construção de Brasília, onde
o governo dá início a uma empreitada de desarraigamento
de moradores de classe social menos abastada, migrantes e construtores
da capital, transferindo-os forçosamente para Ceilândia.
Nancy Araújo foi uma das habitantes realocadas e, quando
criança, cantou no coral que vingou como jingle da CEI.
No desenrolar do filme, Nancy vai atrás de documentos daquela
época. Pela explicação dada, salta aos olhos
uma possível contradição interessante (afinal,
propagandeou contra si mesmo), mas também um típico
e cansado mote da busca pelo próprio engendramento do passado
– aqui, um acerto de contas um tanto quanto anêmico
em sua substância, pois, no fundo, Nancy não se faz
de rogada e se mostra satisfeita com apenas algumas fotos daquele
período.
Mas se a insipidez de seu trajeto (concluindo numa das cenas mais
fracas, pedindo o arquivo de imagens e depois se emocionando com
aquilo) não se sustenta como propulsão de um embate
político, a maior qualidade do filme é a consciência
de sua maior fraqueza. A Cidade É uma Só? era
um projeto para a DocTV, e Adirley Queirós quis adaptá-lo
para o cinema, mas sabia que não conseguia sustentar um
filme só com Nancy. Precisou criar duas novas personagens
ficcionais que gerassem uma forte empatia para poder causar uma
imersão propícia ao diálogo político.
Daí a nova-velha tática de fazer um bolo com ingredientes
comumente estranhos entre si. Não só a mistura do
caldo plácido-denunciatório com a verve de humor
da vida “real” (especialmente encarnada pela interpretação
de Dildu) dá força a toda a montagem, como também
sua decupagem pseudo-mambembe-documental.
Esta
decupagem, no fundo, não engana ninguém que se atente
às relações entre os corpos dentro e fora
de cena - é de se estranhar um documentário que
se apegue tanto aos contrastes da imagem em uns momentos (como
a de quando acompanhamos Zé Antonio no carro à procura
de lotes) e seja tão descuidado no apego plástico,
em outros, (como uma das sonoras de Nancy que certamente se manteve
no corte final por sua crucialidade dramática). Adirley
está mais para a tentativa de criação de
uma atmosfera a la Jean Rouch (lembremos de Cocorico
Monsieur Poulet e depois a cena do carro sendo empurrado
– nos dois filmes) do que para a pura brincadeira de registros.
É quase como se o filme tivesse que ser bom (atraente,
encantador e imersivo) para poder mobilizar um debate. Chega perto
de parecer uma necessidade de se fazer bem feito, de se criar
interesse para se levantar a discussão de um modelo de
convivência entre espaços, pois de outra forma, perder-se-ia
a oportunidade de pôr em pauta o assunto. E perceber a falta
de potência e recriar algo depois, para que se materialize
uma luta com pujança, é de uma sagacidade rara.
Dezembro de 2011
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