A Concepção, de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2005)
por Cléber Eduardo

Sintoma consciente de si mesmo

Bastam alguns segundos para A Concepção, de José Eduardo Belmonte, baixar as cartas na mesa. Temos, de cara, uma voz apresentando algumas pistas sobre o assunto de sua narração. Segue-se uma multiplicação de planos com texturas diferentes, um fluxo acelerado e estilhaçado de imagens, cujo caleidoscópio de informações, naturalmente, produz mais esquecimento que fixação de situações ou sentidos. Cria-se um movimento constante, um jorro audiovisual, que dilui o que constrói. “Acúmulo e apagamento” são as palavras chaves da forma-contéudo. Pois não é outra coisa que A Concepção está a nos mostrar.

A seita filosófica-política que dá nome ao filme, afinal, substitui identidades fixas por mutantes, buscando a morte do ego, de qualquer limitação colocada pela individualidade. Querem ser muitos. Acúmulo. Não querem ser a mesma pessoa um dia após o outro. Apagamento. De prática junkie-hedonista, eles dão um nó no sistema burocrático-capitalista, quebrando a institucionalização das identidades fixas para se tornarem pura ação. Uma ruptura com o sistema sem deixar de mamar nele. Liderados por um guru com ar mefistofélico, os concepcionistas querem ser o nada – uma premissa com a qual o filme pisca o olho para Os Idiotas, de Lars Von Trier.

Não é a única aproximação possível com filmes e diretores de outros países. A antena parabólica de Belmonte, rompendo com a aparente necessidade de muitos filmes nacionais a limitar seu diálogo com a tradição nacional, abre-se ao contemporâneo – no sentido sem fronteiras do termo. E assim podemos ver o laboratório humano de Von Trier, a aparência de improviso de John Cassavetes, a dinâmica de “rock visual anfetaminado” de Danny Boyle em Trainspotting e A Praia, o ar lisérgico (não sem auto-ironia) de Peter Jackson em Almas Gêmeas. Não se está afirmando que Belmonte fez citações ou foi influenciado, e sim que, ao fazer suas opções, demonstra consciência de caminhos percorridos por seus contemporâneos.

Essa abertura para o mundo das imagens, em vez de para as “imagens do Brasil” (no sentido estereotipado do termo), é sintomático do espaço geográfico do filme. O narrador começa afirmando a condição medíocre e entediada de quem nasceu em Brasília. Entre prestar concurso público ou montar uma banda de rock, a lista de opções é aparentemente um estímulo para radicalizar o nada. Vinculando as experiências mostradas, com muito sexo e drogas, ao ambiente onde tudo se passa (Brasília), o filme entra em relação de causa-efeito. Ou seja: sendo Brasília um não-lugar, o jeito é ser não-pessoas. Sendo um não-lugar, o jeito é ser de todos os outros. Se tudo nos é estranho, então tudo nos pertence – como, com outras palavras, nos escreveu Paulo Emilio Salles Gomes.

As imagens desse processo de pirataria de almas, biografias e personalidades também estão em constante transformação – e as quedas narrativas acontecem quando se abre mão do culto ao ritmo para instalar a câmera nas “cenas” e nas interpretações. Temos uma catarata de cortes, de alterações de textura e de percurso da narrativa no tempo. Como seus personagens, A Concepção também tem múltipla identidade e, nessa multiplicidade permanente, reside a fixação de sua personalidade estética. Não se trata, porém, de vale-tudo. Há um sistema organizador na concepção da estrutura e dos trânsitos pelo tempo. Se não chega a organizar o aparente caos de modo a torná-lo organizado demais e caótico de menos, Belmonte não está livre de usar seu narrador para nos conduzir pelo relato labiríntico como um guia nesse passeio pela memória.

Isso suscita aproximações com as estratégias de Jorge Furtado, o cineasta da narração em primeira pessoa, da memória geométrica e dos fluxos mentais lógicos. A diferença fundamental é que, se nos filmes de Furtado a narração extrai sentidos, ou pelo menos celebra a narrativa como organização das experiências, A Concepção usa a organização verbal (também mental e memorialística) para constatar, ao final, que não se pode constatar nada. Assim como em Subterrâneos, longa de estréia de Belmonte, existe um relato em construção, que, após condensar as experiências para entendê-las, apenas identifica o colapso dos sentidos.

De qualquer forma, o lado cerebral, contido na narrativa auto-consciente de seu percurso tortuoso, parece domesticar um diálogo com experiências mais selvagens nesse diapasão – em especial o universo dos anos 60-70 de Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci. No entanto, quando o filme flerta com esse segmento, aparenta ser menos por espírito, mais em nome de uma afirmação de estilo. A Concepção é o filho caçula, vestido no brechó, dos marginais dos anos 60-70. A rebeldia desencantada, na versão brasiliense de Belmonte, é mais chique na atitude, portanto, menos selvagem, mais consciente de seu papel. Organiza demais sua propalada incapacidade de organizar.

Esse senão está longe de apagar a chama de energia e a pulsação do ritmo.  Também não ameaça o ponto mais alto do filme. Embora seja um comentário não sem metáforas de seu espaço primeiro (Brasília) e de seu contexto mais amplo (a contemporaneidade), A Concepção demonstra seu mal estar com o que está a mostrar, mas não o faz com um olhar de fora ou com a superioridade de quem ambiciona a sabedoria. O filma olha-se no espelho, mais como sintoma consciente de si mesmo que como diagnóstico com distanciamento. No panorama de 2006, é uma jóia rara. E reafirma na contemporaneidade a habilidade de Belmonte, já notada em Subterrâneos, para construir seu estilo calcado nos excessos. Ou nos colapsos.

 


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