Acredite,
Um Espírito Baixou em Mim, de
Jorge Moreno (Brasil, 2006) por Paulo Santos Lima
Comédia
de muitos erros Coerência é o que não falta a
Acredite, Um Espírito Baixou em Mim. Coerência, bem entendida no sentido
contemporâneo do termo, essa coerência tão “necessária”, tão apaziguadora de conflitos,
organizadora do oceano de eventos do mundo contemporâneo sempre atulhado, efêmero,
caótico (e basta aqui lembrarmos o que Georg Simmel dissertou no início do século
20 sobre a fugacidade do mundo moderno-tecnológico para percebermos o quanto há
de contaminações do próprio momento histórico quando se julga em tempo real –
e a “importância” de se encontrar algum sentido nas coisas). De fato, o longa
de Jorge Moreno é todo “coerência”, justificando-se como projeto, do título às
imagens. E aqui está o problema: a tela, ou, mais precisamente, o que é visto
nela. Moreno reproduz com franca fidelidade o que estava
na peça homônima na qual se baseia o filme. Uma peça de enorme sucesso, diga-se,
exemplo de um teatro de comédia popular (ou seja, subproduto século 20 da comédia
de erros de Molière), um tipo de encenação que se esmera menos na mise-en-scène
e mais na performance dos atores (o que resultou, aqui no Brasil, tanto em tolices
inomináveis como em trabalhos digníssimos, como o clássico Deus lhe Pague,
mais sofisticado, e os mais popularescos Caixa 2, A Gaiola das Loucas,
Trair e Coçar É Só Começar ou Porca Miséria – nesses casos, com
atores como Procópio Ferreira, Juca de Oliveira, Jorge Dória e Fulvio Stefanini).
Acredite, Um Espírito Baixou em Mim também possui um ótimo ator chefiando
o elenco, Ilvio Amaral (premiado pelo mesmo papel no teatro). Ele é o protagonista,
Lolô, baladeiro e gay assumido que, após acidente fatal, recusa-se a ir para o
céu, a fim de continuar sua ferveção na Terra, sobretudo após conhecer Lucas.
Espírito, ele percebe que pode manipular e encarnar no amigo do seu amado, Vicente,
que é noivo de uma chatíssima perua. A
partir de um humor A Praça É Nossa (portanto, com toda a sorte de exageros
e estereótipos, tal qual a sua matriz teatral), o filme instaura um diálogo com
a TV. O gestuário de Lolô é gêmeo das perfomances de gays nos programas humorísticos,
e o reprocessamento disso no Vicente possuído é apenas uma extensão, jamais uma
superação da própria situação apresentada. Diferentemente de um filme como Eu
os Declaro Marido e... Larry, comédia recente de Dennis Dugan, na qual a condição
homossexual repercute numa discussão política a respeito de um país (os Estados
Unidos, no caso), a questão de Acredite, um Espírito Baixou em Mim é “melodramática”,
puramente de (des)ajuste físico-personal. Daí talvez esteja o olhar curto e preconceituoso
do discurso, pois, por mais que tenha fiel proximidade a Lolô, o filme arregala
os olhos sobre a “deformidade”, a disritmia, causada por ele. O tom parece libertário,
sem dúvida, mas a caricatura extrema dilui o firmamento de uma posição política. Sem
intenção de naturalizar ou tornar reais as situações, o tom é francamente fake,
kitsch e encenado. O que é de uma coerência notável se o projeto é mesmo
o de ser fazer uma obra francamente debochada, farsesca. Por isso, nada contra
os espaços serem meros papéis de parede que emolduram os atores (o que muito lembra
o papelão e isopor dos programas de TV). Se há coerência na estilização e nas
atuações, é incompreensível a adoção de uma estética anos 80 (um tantinho pelo
artificialismo, mas sobretudo pelas vinhetas de animação gráfica que parecem grafismos
da época em que a computação dava as caras no mundo). A
câmera comporta-se pior (inclusive pior que nesses trabalhos televisivos B): num
simples corte, por exemplo, haverá uma pessoa falando em diagonal à lente (posição
tão clássica quanto usual na dinâmica mais básica da gramática do cinema) com
outra que, no contraplano, olha frontalmente para nós – é como se houvesse uma
câmera observando a cena em terceira pessoa num plano e a outra sendo, no seu
contra, subjetiva. Isso acontece inúmeras outras vezes: a quebra de eixos é brutal
– e, claro, não é um recurso moderno, mas sim um erro de ortografia. Já a edição
é um bocado conveniente às limitações dramatúrgicas, pois a idéia, aqui, é costurar
várias seqüências rápidas, sem muitas delongas para reproduzir alguma piada verbal
ou gestual, dando alguma informação factual para a história — ou seja, vários
esquetes costurados sem que a dialética dos planos e seqüências crie um sentido
de algo decorrido, o que seria importante nesse tipo de comédia. Que
fique claro, esse “mau gosto” não é um termo passível de análise, porque, se gosto
é relativo, como diz o ditado, é fato que filmes da Boca também eram vistos como
obras de péssimo gosto, “mal filmadas”, grosseiras até. Mas havia ali um punhado
de realizadores (como Ody Fraga, esteta respeitável) para comprovar que a estética
era muitas vezes uma discussão nesses filmes, cuja paródia avistava o país, fazia
frente a um cinema que respondia junto às condições econômicas do Brasil, fazia
da imagem um esmoler estético. Um cinema que puxava um largo público para dentro
das catracas. Acredite, Um Espírito Baixou em Mim era visto, em sessão
vespertina, semana passada, em São Paulo, por duas ou três pessoas. E isso, sim,
pode ser considerado de uma coerência bastante pertinente.
Setembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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