Adágio Sostenuto, de Pompeu Aguiar (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

Um cinema acossado

Os quase dez minutos que Adágio Sostenuto leva para apresentar seus créditos iniciais, entrelaçando na narração em off um trecho de Joseph Conrad com imagens de uma beira de mar noturna e inserts de imagens de arquivo de ataques de kamikazes japoneses a navios aliados na Segunda Guerra, serve tanto para introduzir o método a ser utilizado por este peculiar filme como para delimitar com alguma certeza as fronteiras até onde ele conseguirá levar sua proposta. Isso porque, embora este trabalho de Pompeu Aguiar cause saudável estranhamento numa produção nacional no geral bastante formatada em determinadas maneiras de se aproximar do cinema, o resultado final como se dá na tela não consegue dar conta das (nada pequenas) ambições que o movem.

Antes de irmos aos argumentos que tentem minimamente embasar este “veredito”, por assim dizer, vale informar minimamente o leitor que por ventura não conheça o nome de Pompeu Aguiar de sua trajetória um tanto sui generis, que o leva a ser um estreante em circuito comercial de cinema, ao mesmo tempo em que passa bem longe de ser um iniciante. Aguiar realiza filmes desde o final dos anos 70, tendo realizado três curtas em 35mm antes de se retirar definitivamente nos formatos de vídeo. Se hoje ele chega às telas do circuito comercial graças a existência de um espaço garantido para a exibição digital em igualdade de condições com a da película, ele já é há algum tempo um pioneiro da realização independente do cinema de longa-metragem em vídeo no Brasil, tendo finalizado trabalhos tanto em U-Matic quanto em Beta ao longo dos anos 80/90 – todos, claro, restritos aos poucos festivais e mostras que exibiam formatos de vídeo de maneira mais aberta naquele momento. Assim, embora esta seja sua “estréia” em cinema de longa-metragem de acordo com a maior parte de filmografias que se encontre do cinema brasileiro, na verdade é seu quarto trabalho de longa duração.

Mais do que simples anotação bio-filmográfica, esta informação é importante para explicar a amplitude de escopo dos interesses de Aguiar com este Adágio Sostenuto, bem pouco esperada para o que seria apenas mais um “filme de estreante”. Afinal, o filme se utiliza de duas narrativas cruzadas de relações de personagens com a morte, ao mesmo tempo em que tenta colocar na tela o dilema criador de personagens que fazem cinema. De um lado, temos a filosofia como norte (a finitude, a transitoriedade, o suicídio); de outro, a reflexão sobre as possibilidades da expressão cinematográfica frente a estas “grandes questões” assombrando seus personagens principais (ou, na verdade, sua personagem principal – já que Dedina Bernardelli está praticamente sozinha em cena, com as vozes de Alexandre Borges e Priscila Rozenbaum construindo dois personagens em constante off, ambos fantasmas e projeções, de maneiras diferentes). Ou, por outra: o filme se interroga sobre o que pode o cinema (a arte, o homem) frente a passagem implacável do tempo e a violência inerente a qualquer morte – mas, em especial a uma inesperada e “antes do seu tempo”?

Pois não deixa de ser curioso que, ao relatar a narrativa de uma mulher que duvida das possibilidades do (seu) cinema em dar conta da imensidão da vida e da morte, Pompeu Aguiar acabe tropeçando justamente numa aparente desconfiança na capacidade do seu cinema em fazer o mesmo. E, mais do que isso, o filme parece desconfiar um pouco do cinema de maneira geral. Isso porque, apostando na posição deste como herdeiro de artes mais “antigas”, como a música (em especial, a ópera, mas não só), a pintura, o teatro e a literatura, Aguiar faz do seu filme algo que resulta entre um compêndio de citações e de reflexões que, na relação estabelecida entre a palavra e a imagem, deixa muito pouco espaço para que o cinema de fato sobressaia e se afirme por si com alguma real potência. Não se trata aqui de pensar num cinema puro (pois a esta altura da sua história, não se pode mais acreditar a sério na existência deste), mas sim na possibilidade de um efeito único que o cinema já tenha se capacitado a propor para além (não no sentido de ultrapassagem, mas sim de afirmação) do que herdou das artes que vieram antes dele.

Se na medida em que Adágio Sostenuto avança, vamos percebendo o quanto o cineasta admira o efeito transcendental da arte de um Lizst ou de um Joseph Conrad (entre tantos outros citados, tocados ou exibidos no filme), nunca sentimos de fato que aquilo que o seu cinema traz de “novo” (não no sentido de único ou nunca antes visto, mas simplesmente de expressão para além das obras anteriores) consegue, seja pela força da sua encenação ou da sua montagem, atingir tal efeito. Não se trata exata ou exclusivamente de uma questão de medição de talento, de posicionar Pompeu Aguiar frente a uma lista de notáveis das artes que ele mesmo traz para questão. Trata-se mais de ver que, no afã de muito dizer, de muito referenciar ou citar, Aguiar parece perder de vista que a simplicidade de um relato cinematográfico talvez seja caminho de igual força para atingir algo próximo daquilo que ele sente frente às obras dos artistas que ele admira. É claro, porém, que não se pretende aqui, pois não deve ser este o papel da crítica, dizer a Pompeu Aguiar qual cinema ele deve fazer. Trata-se mais de tentar perceber que, no afã de exercitar um determinado cinema ensaístico e historicizante (cuja matriz numa certa produção godardiana fica tão cristalina que chegamos a ter em cena um cartaz de Elogio ao Amor decorando um espaço de trabalho da personagem principal), faltou a Adágio Sostenuto solucionar melhor este espaço tão perigoso e escorregadio no cinema, entre a reflexão e a ilustração.

Porque, de fato, a maneira como suas falas são escritas e lidas, e principalmente a maneira como se relacionam com as imagens e as camadas de sua narrativa resultam num progressivo distanciamento entre o espectador e o objeto-filme, pelos excessos quase didáticos de analogias e metáforas explicitadas. É o que acontece quando não basta mostrar a imagem de um avião kamikaze ou de uma onda num mar escuro, mas se sente necessário explic(it)á-la até o último grau de sentido possível. Nessa operação é que o cinema sai perdendo: quando não se crê que o papel do espectador é o de partilhar o fluxo de imagens e sons com o realizador de forma a atingir a epifania artística por si, mas sim ser levado pela mão até ela – algo que, automaticamente, impede exatamente que se concretize aquilo que se buscava. E o filme termina nos lembrando de alguns exemplares recentes de Peter Greenaway, por exemplo, sendo um destes estranhos objetos que ao realizar cinema parecem propor algo sobre sua própria morte – resultando um tanto esquizofrênico neste funesto impulso criativo.

Maio de 2009

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