À Deriva, de Heitor Dhalia
(Brasil/França, 2009) por Francis Vogner
dos Reis Drama
emoldurado
A trajetória de Heitor Dhalia é curiosa. Sua
estréia em longa-metragem foi com Nina, filme de plasticidade grotesca
que determinava uma espécie de estética de brechó que dava
valor central à sua cenografia engessada com simetrias, composições
de cores escuras, objetos de cena vintage e que não conseguia disfarçar
que, apesar de ser supostamente baseado em "Crime e Castigo", de Dostoiévski,
era simplesmente a constatação que os anos 90 chegaram tardiamente
para ele. Filme de fetiche explícito, pueril, aberrante. Tinha uma franqueza
que só a inexperiência pode trazer à tona. O horror era evidente.
O Cheiro do Ralo tornava isso muito sofisticado, Dhalia organizou o caos
e, diferentemente de Nina, deixou tudo higiênico demais, sendo que
na verdade ele descobriu como jogar a sujeira para debaixo do tapete. A estratégia
de assepsia era clara. Em À Deriva, o diretor finalmente consegue
sistematizar seus objetivos, encontrar lugar para as coisas, para a sua vontade
em ser de "esteta". Só que antes de ser uma mudança significativa
como artista, é uma evolução perversa. Heitor Dhalia aprendeu
direitinho a lidar com a aparência. Troca as cores chapadas do universo
urbano pela palheta de cores que tenta dar conta da variação pictórica
das belezas naturais. Na beleza, identificar um impostor pode ser mais difícil.
Ao
invés do mundo sórdido, uma família em uma casa de praia.
A protagonista é Felipa, uma garota bonita que vê os pais em crise,
testemunha o adultério de um deles e experimenta coisas típicas
da adolescência. Supostamente estamos lidando com gente de verdade, com
problemas reais. Se a intenção em construir um drama existe, é
mais como princípio organizador e menos como maneira de extrair da cena
alguma força genuína dos personagens (que independa dos efeitos
do estilo). Para reforçar a atmosfera grave dos personagens Heitor Dhalia
se aplica a cadenciar suas imagens em um ritmo que pretende sensualidade e exasperação
dos corpos (cabelos ao vento, câmera trepidante colada aos corpos, planos
detalhes), entope o filme com uma música que tenta dar peso a cenas que
se querem dramáticas e cria imagens tão belas como gravura de calendário,
a partir de composições asfixiadas pela necessidade de equilíbrio
e vertigem, que buscam em sua totalidade exprimir os estados dos personagens.
As imagens estilo Príncipe das Marés, com a câmera
no fundo da água que revela personagens nadando, se repete sistematicamente.
Heitor Dhalia quer "fazer bonito", como nos filmes anteriores
queria "fazer sórdido". Só que o sórdido de mentirinha
gera o patético e a beleza em excesso causa o entorpecimento. Se antes
o enunciado de suas imagens denunciava o simulacro naturalmente vazio e regressivo,
em À Deriva existe um drama que procura dar relevo humano e existencial
aos personagens, aspira construir um mundo, conceber "pessoas de verdade".
Só que não há "estrutura dramática" que
dê à luz e vida a um filme que depende exclusivamente de efeitos.
À Deriva fala de dor, mas não encontra a dor, fala de crescimento,
mas não confronta os paradoxos da puberdade. A garota Felipa vê a
vida de sua família desmoronar, mas é só olhos e dor, o desejo
tão caro ao tema do filme é ausente nela, o sexo vem em uma chave
revanchista somente. A câmera a deseja, ela não é desejante.
Felipa é uma personagem tão plana e (somente) reativa como Nina
e Lourenço, de O Cheiro do Ralo. Julho
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|