O Último Mestre do Ar (The Last Airbender),
de M. Night Shyamalan (EUA, 2010)
por Fábio Andrade
Na
corda bamba
Quando, já no terço final de
O Último Mestre do Ar, Aang, o Avatar (Noah Ringer),
tem lições sobre a dominação da água,
seu mestre discorre longamente para os alunos a respeito do poder
simbólico daquele elemento. M. Night Shyamalan filma de maneira
solene esse extrato trivial do mundo, como os momentos de fé
devem sempre ser filmados - os atos religiosos, as performances
musicais, as cenas de luta - quando se quer conservar intacto seu
sentido original. De fato há, nesta cena, um forte grifo
metalinguístico, neste que é provavelmente o mais
metalinguístico entre os filmes de Shyamalan: para penetrar
em seu cinema, é preciso estar sempre atento ao fato de que
estamos a lidar com símbolos, que carregam consigo uma série
de significados.
O Último Mestre do Ar é, nesse sentido, o
filme mais didático de toda a carreira do diretor. A decomposição
do mundo em quatro elementos básicos torna as "regras
do jogo" absolutamente claras. Não há segredo
a ser desvendado - e aqui não estou a engrossar a triste
ladainha dos "finais surpresa". Embora diversos de seus
filmes anteriores primem por sentidos que repousam logo abaixo da
superfície, O Último Mestre do Ar vem afirmar
que camuflar os símbolos era mais uma decorrência natural
das estórias que Shyamalan decidia contar do que, com efeito,
o fim secreto de sua arte. Seu interesse fica mais claro neste
inevitável espelhamento com o próprio filme: compreender
o significado dos símbolos para, então, dobrá-los
(o verbo "to bend" que vem no título, e que é
traduzido ao longo do filme como "dominar"), articulando
esses significados com intenções alegóricas
que só encontramos com igual intensidade no cinema contemporâneo
nos filmes de Tsai Ming-liang. A água nunca é tão
somente água.
Afinal,
estamos a falar de um filme de ação onde ninguém
parece se machucar, e onde um jato de fogo no rosto não deixa
marcas para além de um breve desmaio. O campo de batalha
é a clareira ideal para o simbólico, e Shyamalan acentua
essa vocação com cenas de "pancadaria" que
não trazem qualquer resíduo de violência. Os
golpes são inscritos na duração, em belas dinâmicas
de planos-sequência, e a adoção - nada irônica
- do super slow à Zack Snyder vem como uma correção
de efeitos. Pois em Watchmen, esse recurso servia para
congelar o ápice da violência, distendendo o impacto
do golpe em uma mal ajambrada glorificação. A ironia
do procedimento mal usado foi desmascarada em praça pública
por Sylvester Stallone em seu Os Mercenários: retirar
o que há de abrupto no ato violento é, na verdade,
neutralizar qualquer traço de violência. Shyamalan
usa o mesmo recurso, decidido a mostrar que uma coisa não
serve ao seu contrário: seu super slow marcará
os golpes não dados, as esquivas, a possibilidade de vencer
uma batalha épica sem causar um arranhão.
Esse respeito inalienável à articulação
dos significados é a característica mais marcante
do trabalho de Shyamalan, e a que garante ao seu cinema um lugar
de destaque no atual panorama cinematográfico. Pois assim
como o diretor se atenta ao simbólico do que filma, ele também
deposita uma enorme fé na carga simbólica de como
filma. É isso que faz com que seus filmes sejam algo além
do que uma simples reação à indeterminação
da arte pós-utópica, pois cada travelling
carrega o peso de suas consequências, e cada primeiro plano
- recurso que, em O Último Mestre do Ar, ganha uma
força inédita em sua carreira - parece capaz de esconder
(e revelar) todo um mundo.
Por
outro lado, a água também nunca pode ser fogo. Daí,
talvez, surja o estranhamento maior diante de O Último
Mestre do Ar, que é também sua maior virtude.
Pois se, por um lado, há procedimentos extremamente corriqueiros
das mais atuais encarnações do gênero de super-heróis
(gênero primordial para os filmes de Shyamalan), esses procedimentos
têm o sentido deformado por essa ambição alegórica
que entorta tudo que vê, mas que, ao mesmo tempo, precisa
respeitar o sentido original dos elementos. Temos, com isso, uma
ação que conjuga integralmente "forma" e
"matéria", onde a escrita da câmera - o "como"
- é tão importante quanto o mundo diante dela - o
"o que".
É com isso que O Último Mestre do Ar deixa
de ser um filme protocolar para levantar uma franquia de super-heróis,
e se torna parte integrante de uma obra ainda em progresso, com
os pés clara e fortemente fincados no universo de um autor
que afirma seus valores à medida que os reiventa. Se não
temos, aqui, o mesmo impacto de Sinais ou A Vila,
é muito por O Último Mestre do Ar ser um
filme que confirma expectativas. Shyamalan, que sempre dobrou as
convenções do cinema de gênero a interesses
muito particulares, dessa vez parece precisar travar o seu olhar
para atingir um público que possa garantir a realização
dos próximos episódios da série - e não
há exemplo maior disso do que o filme, sendo um filme de
Shyamalan, não ter exatamente um final. A impossibilidade
de desestabilização do espectador crítico é,
porém, compensada pela habilidade do manejo das formas e
sentidos, e por uma vontade de leveza um tanto inédita para
um cinema de vocação messiânica. Em O Último
Mestre do Ar, M. Night Shyamalan transforma o peso dessa responsabilidade
em pura jouissance.
* * *
Em época que a politique des auteurs segue arrastando
o pé com feridas abertas e tripas à mostra, é
inevitável que a busca de palavras como "universo"
e "obra", e menções indiretas à camera-stylo
de Astruc façam soar uma série de alertas. O caso
de M. Night Shyamalan exige que algumas questões sejam colocadas
em perspectiva. Em primeiro lugar, o "auterismo"
que parece mais cabível aqui não é o professado
por Truffaut e cia nos Cahiers, mas sim a versão à
americana importada por Andrew Sarris e melhor condensada na introdução
e no método de The American Cinema. No
gesto de Sarris, a valorização do auteur
cinematográfico tinha a intenção política
de garantir a sobrevivência da arte em um mundo assumidamente
comercial (Hollywood), entortada até mesmo pela academia
a leituras (sociológicas, psicanalíticas, semiológicas
- todas elas privilegiando o "o que" ou o "como",
como se eles fossem entidades separadas) supostamente sérias
que aniquilavam o caráter artístico dos filmes. Além
disso, se à época a política era uma reação
à indústria que forçava Ford, Welles, Renoir,
Lang e mesmo Chaplin à intermitência - quando não
à aposentadoria -, hoje temos diretores como Brian de Palma
e David Lynch praticamente banidos de Hollywood, trabalhando primariamente
e a duras penas com dinheiro estrangeiro. O gesto político
de Sarris - muito mais lúcido de suas limitações
e potências do que o clube dos Cahiers - não perdeu
validade.
Mas por outro lado - esse sim mais importante - Shyamalan é
um desses casos em que a idéia de auteur ajuda a
compreender em termos artísticos e históricos. Pois
a política dos auteurs é tão somente
uma proposta de abordagem/escritura histórica para a arte
do cinema, que precisa ser aplicada com alguma flexibilidade. Shyamalan
constrói sua obra propondo esse modo de leitura (podemos
dizer o mesmo de Hong Sang-soo, ou novamente de Tsai Ming-liang),
trabalhando cada filme com uma aguda percepção de
"corpo de obra", relacionando cada passo do presente à
história de uma única trajetória. Há
os filmes, individualmente, mas há também a nítida
sensação de um trabalho maior em curso, do qual os
filmes são apenas pequenos e essenciais passos. A proposta
histórica do auteur é justamente a de reconhecer
essa rara intenção - que, no caso, é propositiva,
e não retroativa, como na época de Sarris e na leitura
moderna de diretores como Clint Eastwood, onde o auterismo
indiscriminado deixa de ser meio e se torna fim, evidente na condescendência
generalizada às fragilidades de um Invictus e à
auto-celebração de Gran Torino - e conservar
os filmes dentro desse corpus, percebendo a importância
dos passos em falso dentro de uma trajetória.
O
Último Mestre do Ar - filme
sem dúvida menor dentro de uma carreira até então
impecável - interessa não só pelos seus acertos,
mas também por o que seus erros (ou os momentos que transparecem
um automatismo na direção) deixam transparecer. Pois
se, tomando as palavras de Sarris, os diretores "não
mereceriam maior atenção, não fosse o fato
de, quando em vez, eles extraírem miraculosamente o sublime
de um ambiente guiado pela necessidade de se fazer dinheiro",
Shyamalan se torna um dos casos mais fascinantes entre os artistas
que, se equilibrando na corda bamba da indústria, pedem sempre
cordas mais finas, e penduram mais pesos de um lado que de outro,
testando obstinadamente até onde ele pode resistir ao desequilíbrio
que ele mesmo provoca.
Setembro de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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