pariscópio
Imagens sussurradas
por Cezar Migliorin

São imagens e sons sussurrados. Imagens feitas no escuro, com uma luz infravermelha. Imagens muito próximas aos corpos quase belos de prostitutas japonesas. Sexo entre elas e o próprio realizador (talvez). As imagens são próximas demais, o realizador também. No som, ouvimos as histórias dessas moças, narrada por elas mesmas. Carne, Desejo, Agonia, Abismo, Instinto, Êxtase. Nenhuma fala é menos sussurrada ou tátil que as imagens. A narrativa das vidas nunca ocupa o filme. Estamos sempre entre o estranhamento das imagens explícitas e um grande afeto que o filme constrói.

Aka Ana (Vermelho Buraco) é o filme do fotografo francês Antoine D’Agata que a Cinemateca Francesa exibe na exposição L'image d'aprés, com curadoria de Diane Dufour (Magnum Photos) et Serge Toubiana (Cinemateca Francesa). O trabalho de D’Agata é uma espécie de diário de viagem ao universo da prostituição em Tókio, inspirado no cineasta japonês, Nagisa Oshima. L'image d'aprés apresenta o trabalho de dez fotógrafos da agência Magnum. Cada trabalho guarda uma relação com um filme. Alec Soth, por exemplo, apresenta uma seqüência de grandes fotos de cinemas no sul dos Estados Unidos, inspirado no filme No decorrer do tempo de Win Wenders. Nesta exposição o cinema é a memória da foto e da arte. O cinema, na definição do fotógrafo e fundador da Magnum, Henri Cartier-Bresson: “é sempre o que vem depois; menos a imagem vista e projetada, mas a que sucede”. Pode o cinema ser o que inspira novas imagens, novas relações com o real? Ser a “imagem de antes”?

Experiência como informação

Misturar-se ao que se filma, fazer parte da imagem, intervir no objeto filmado, tudo isso parece ser uma estratégia para dar conta de uma descrença na imagem, uma descrença na possibilidade de a imagem ser o que faz ver e ouvir o outro, na possibilidade de a imagem ser o que me permite abandonar o isolamento de minha singularidade. Implicar o realizador para reconectar a imagem ao mundo. Na televisão, por exemplo, não se documenta o que come uma tribo da Mongólia, se envia um jornalista que come o que as tribos da Mongólia comem.

Entretanto, essa estratégia nada garante. A conexão da imagem com o mundo não é um problema de confiança, mas de invenção. Se a saída da câmera dos estúdios e o som direto foram modos de colocar o cinema 'sob o risco do real' (Commoli), hoje o risco do real se tornou estratégia de indicialidade. A morte de Saddam Hussein está ai para confirmar. A experiência nesses casos torna-se apenas um meio de produzir um efeito de real, buscar uma marca de indicialidade na imagem. Nestes casos, a experiência confunde-se com a informação. A experiência de D'Agata não tem relação alguma com o que acontece nessas estratégias verídicas das imagens contemporâneas. A experiência aqui está baseada em outros movimentos, outros tipos de relação com a imagem e com o mundo – o que separa e une os homens (Hanna Arendt).

Imagem-Experiência

Primeiramente, o que D'Agata filma e fotografa é grande demais, lhe afeta demais para que ele esteja fora. Quando se trata de um filme em que o realizador, fala 'meu pai' ou 'meu filho', imaginá-lo de fora, parece impossível, hipócrita até. Pois é este o sentimento que temos com essas imagens de D'Agata: o que ele filma é excessivamente seu mundo para que ele se coloque de fora ou distante. A experiência do fotógrafo passa pelo próprio desejo naqueles corpos, um desejo sexual e afetivo. "Não é o olhar que um fotógrafo tem sobre o mundo que me interessa, mas a sua relação, a mais íntima, com ele", diz D'Agata.

Claro, mas essa relação está nas imagens, não como um documento desta relação íntima com o mundo, mas como materialidade mesmo: nos sons, nos sussurros, na proximidade pornográfica, nos rostos de prazer e dor. Um procedimento que forma uma imagem esteticamente afetada pela experiência. Um procedimento que distancia o filme do realismo descritivo na imagem e no texto, por um lado, e por outro, da estética que busca a "imagem perfeita", única, ideal e insubstituível. Uma imagem-experiência é uma imagem de passagem, entre indivíduos e entre saberes. “Meu nome é Iku (ir), mas você me chama de Sumi”, diz uma das moças.

Para D'Agata, a experiência é a única forma de conectar as mulheres, ele próprio e uma imagem que ultrapasse a ambos. Uma imagem-experiência não se faz nem sozinho nem só do outro. Ela só pode surgir desse encontro, dessa tensão que D'Agata traz para imagem. As imagens e os sons de Aka Ana não tem o realizador como destinatário, nem o espectador tampouco. Corpos nus em prazer e sofrimento, exibindo-se para um público anônimo ou em restos de um sonho, aparecem como sons orgásticos pré-individuais. Como um som sem dono que surge no sexo. “Meu nome é Iku, mas você me chama de Kei.”

Agir na imagem, sofrer a imagem

No processo de D'Agata há uma perturbadora presença de potência e impotência. Uma potência em fazer as imagens, em procurar os corpos no escuro e suas velocidades eróticas, mas há uma impotência. Um deixar-se levar, submeter-se ao que filma, ao universo das prostitutas e dos homens que por ali passam. A imagem-experiência de D'Agata aparece nesse compartilhamento da imagem; entre o cineasta, o turista, a prostituta, a jovem japonesa, o homem, o tesão, o tesão, a pornografia, o sexo, a ternura e a presença de uma câmera. « Não me apague, não me largue », diz uma das prostitutas.  A experiência não traz garantias de indicialidade, mas é uma experiência de linguagem. A invenção de um espaço para estar, de um tempo para habitar. Que a experiência me impeça de eu ser eu mesmo!

Foucault disse em diversas ocasiões que se tivesse que escrever um livro sobre o que ele já sabe, ele não teria forças ou coragem de fazê-lo. Uma imagem-experiência, como essas de D'Agata, partem desse pressuposto, com uma variável importante: ao final do filme, o que temos continua separado de um saber sobre o filmado, sobre as prostitutas e sobre Antoine. É o deslocamento em relação a um saber estável que garante a verdade dessas imagens. “Meu nome é Iku, mas você me chama de Saki”.

A imagem-experiência problematiza a própria noção de « filmar o outro », cara ao documentário. O outro não deixa de existir, certo, porém sua existência só faz sentido enquanto ele é ponte para vários, enquanto o outro torna-se algo que se filma e escapa. O outro forma par com o eu. Aí o problema de pensar o documentário em termos de: filmar o outro. Há uma reconstituição de uma dicotomia que imagens como estas de D'Agata esfacelam. Mas não abandonemos o outro, nem conceitualmente – o outro é o negativo do mesmo, o que escapa ao pensamento e me obriga a pensar – nem como o corpo que não é o meu, que me excita e repulsa, que sente a dor que não sinto, que fala a língua que não falo, que tem o cheiro que não tenho, que ama como não amo.

Um filme pornográfico

O filme d'Agata é a mais pura e bem sucedida pornografia, se tomarmos a palavra em sua origem grega : pórnê, prostituta/gráphô, grafia, descrição. Nem nas imagens nem nos sons o filme tenta ultrapassar o fato que alí se trata de prostitutas. Difícil limite para o documentário; a vontade, louvável, de ampliar as classificações policialescas: a prostituta, o ladrão, o artista. Em Aka Ana isso não acontece, justamente por conta do envolvimento de Antoine d'Agata. O trabalho de escritura não está separado do trabalho de pensamento e da experiência.

Quando no documentário tentamos multiplicar as identidades: « ela não é apenas uma adolescente de favela ela é também: x, y e z » não saímos do esquema classificatório das identidades. Difícil limite do documentário. Ouvir o outro sem o desejo de multiplicar suas identidades. O que d'Agata faz em seu filme é abandonar qualquer identidade possível. Há uma concentração absoluta na ação, no que se ouve e se vê no encontro entre eles. O que é filmado não é uma nova identidade possível, mas a identidade escorregando, se desfazendo. Nem mais só prostituta; nem ainda outra coisa. Nem mais só cineasta e nem ainda outra coisa.


Notas:
- No site de Antoine D'Agata estão expostas algumas de suas fotografias e seus elaborados textos sobre seu trabalho.
- A noção de imagem-experiência é de Victa Carvalho.

editoria@revistacinetica.com.br


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