Além
da Estrada, de Charly Braun (Brasil/Uruguai, 2010)
por Eduardo Valente
A
distância entre o meu e o nosso
O caminho mais fácil para se tentar “dar conta”
(e uma dentre as várias armadilhas da crítica certamente passa
por essa expressão verbal) de Além da Estrada seria encaixá-lo
confortavelmente como apenas mais um exemplar de duas categorias
bastante presentes nesse caldo a que se chama de “cinema contemporâneo”:
primeiro, a das produções transnacionais (temos aqui um cineasta
e produção brasileiros, usando atores principais argentinos para
filmar no Uruguai); depois, a dos filmes “abertos”, em que os
atores/personagens perambulam por um espaço sem aparentar seguir
muito um roteiro, se relacionando com paisagens e pessoas com
que cruzam no seu caminho. Ambas poderiam, perfeitamente, descrever
e/ou encapsular Além da Estrada – mas como quase sempre
é o caso, sujar as mãos indo às especificidades do filme em meio
a estas categorias pode se revelar muito mais adequado no caminho
de chegar perto dele, seja em suas qualidades ou defeitos.
Para isso, talvez seja essencial começar, curiosamente,
pelos créditos finais do filme (e é importante perceber que falamos
aqui de um dado presente ainda no corpo do filme, e não alguma
informação que recebemos ao ler alguma entrevista do diretor ou
algo do tipo – sendo assim algo que, não só literal e intrinsecamente
faz parte do filme, como ainda o “encerra”). Pois o fato é que
ali, quase escondida entre uma primeira lista dos principais colaboradores
e a rolagem da listagem final dos trabalhadores e serviços, parece
se encontrar a chave que desvenda o que realmente move Além
da Estrada: surgem na tela naquele momento, sem qualquer função
narrativa real, imagens em VHS que podemos facilmente localizar
como realizadas em algum momento da virada dos anos 80 para os
90, e que mostram pouco (ou nada, de fato) mais que momentos familiares
vividos em vários dos mesmos locais que reconhecemos do filme
que acabou de passar.
É claro que podemos interpretar estas imagens
como lembranças da infância do personagem principal do filme,
e não haveria nada de errado com isso. Mas, principalmente por
sua óbvia realização anterior de fato (as imagens deixam brutalmente
claro que não são estetizações de filmes caseiros daquela época,
mas sim verdadeiras imagens de então), mas também pelo local em
que se decide encaixá-las no filme (ou seja, de alguma maneira
já “fora dele”), é mais fácil entender que são imagens do próprio
acervo pessoal do diretor, de sua família e dele mesmo, que finalmente
emprestam ao filme o sentido que a ficção nem sempre consegue
dar conta: a do alto grau de pessoalidade envolvido em tudo que
acabamos de ver. E me parece ser por aí, pela proximidade pessoal
entre realizador e universo, que precisamos então compreender
que tanto a transnacionalidade, quanto a abertura ao mundo real
do filme de ficção que acabamos de ver, não se devem de fato a
nenhuma “agenda do cinema contemporâneo”, mas sim às contingências
que movem mais profundamente o ato criador deste Além da Estrada:
reencontrar um espaço ao mesmo tempo estrangeiro (literalmente)
e profundamente familiar, e tentar perceber nele as tensões entre
passado, presente e futuro (todas as três dimensões bastante importantes
na narrativa) que ainda (co)movem quem ali circula (e aí podemos
pensar no personagem principal servindo como alter-ego do diretor,
mas estamos falando principalmente da câmera).
Aproximar-se
do filme por esta pessoalidade, mais do que as outras características
mais óbvias ajuda-nos a entender em parte algumas das fraquezas
de articulação que ele sem nenhuma dúvida revela na sua construção
ficcional. Porque muitas vezes parece não ser fácil para o filme
notar que alguns dos sentimentos que ele mesmo claramente percebe
em naqueles espaços e/ou pessoas simplesmente não estão na tela
de maneira que possam ser partilhados por quem os assiste sem
uma relação prévia. Essa relação era justamente a que precisava
ser construída pela ficção, e que muitas vezes simplesmente não
se dá, pois o filme se contenta em tocar uma música bonita ou
apelar para imagens com texturas diferentes para tentar criar
poesia – o que poucas vezes realmente funciona. Se dá melhor,
porém, quando vai ao concreto: quando coloca os corpos ou as pessoas
e os espaços para se relacionar através de uma motivação que nos
parece efetivamente crível, e portanto sentida (algo que acontece
em especial em todo o momento que se passa no hotel do tio, e
na estranheza da comunidade neo-hippie).
Não é o caso de se falar, como seria simples fazer,
que falta roteiro ao filme (inclusive porque entre os piores momentos
do filme está certamente um que foi claramente colocado ali por
questão de roteiro – a bizarra transformação momentânea do personagem
em um playboy do jet set de Punta Del Este). O que
muitas vezes falta, de verdade, é que dos encontros (entre pessoas,
entre espaços, entre a câmera e o mundo) resulte uma energia verdadeiramente
potente. O filme parece por vezes demais se encantar ele mesmo
com alguns dos seus momentos, e achar que por isso é garantido
que qualquer um que o esteja assistindo também o fará. O resultado,
curioso, é que a paisagem uruguaia acaba funcionando para o filme
um pouco como a personagem feminina o faz para a masculina: serve
mais como repositório de um fascínio, como objeto de encanto,
mas ao se dar pouco espaço para que ela se expresse por si, ela
não se torna completa, dotada também de sua própria subjetividade.
É uma imagem, uma lembrança, uma projeção – e assim, faz mais
sentido para quem a constrói do que para quem a vê. É por tudo
isso que, se os encantos de Além da Estrada são de ordem
um tanto genérica (o que todos podemos partilhar de um espaço
bonito, uma companhia bonita, um passado em comum), suas incompletudes
lhe são bastante particulares.
Setembro de 2010
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