in loco - cobertura dos festivais
Todos os Outros (Alle Anderen), de Maren Ade
(Alemanha, 2009) por Filipe Furtado
O
casal
Há filmes que nos impressionam simplesmente
pelo olhar. Todos os Outros é um deles. Seria fácil compará-lo a outros
filmes que podemos localizar nele: um tanto de Cenas de um Casamento, outro
tanto de Uma Mulher sob Influência, talvez um quê das comédias de casamento
de Leo MaCarey. Só que Maren Ade não tem nenhuma grande preocupação com cinefilia,
ela só se interessa em manter seu olhar focado sobre um casal. Todos os Outros
é um filme de observação, seus prazeres vindo justamente da maneira como a cineasta
capta as sutis movimentações das relações íntimas daquelas duas personagens. O
filme tem uma fotografia neutra e seca com ênfase freqüente em dois corpos deslocados
sob um espaço maior, seja um casarão de férias, seja uma montanha (o protagonista
ser um arquiteto não é acidental). Ade trabalha o tempo todo em função de isolar
o casal dentro da sua dinâmica própria. Parte da força de Todos os Outros
reside justamente em como o filme é apto em captar a maneira como seu casal se
comunica de forma própria, e todos os pequenos gestos que pertencem exclusivamente
a eles. É um dos melhores filmes de linguagem corporal que vemos em muito tempo
(o filme certamente não seria o mesmo sem o trabalho preciso dos seus dois atores
centrais, Birgit Minichmayr e Lars Eidinger). É um filme sobre como uma relação
vai se fragilizando num período especifico, mas sobretudo como este processo é
escrito naqueles dois corpos – e só por isto já seria um filme notável. Há
dois movimentos distintos na ação principal: na primeira parte, com o casal isolado
no seu mundo privado; e, mais à frente, após encontrarem um amigo mais bem sucedido
dele, ao verem esta privacidade ruir. Toda a tensão já se desenha no começo: ela
não tem nenhuma idéia de como lidar com os excessos de insegurança dele, ele aprecia
o jeito excessivo dela, mas obviamente é colocado na defensiva. É visível que
exista por parte de Ade um interesse social para além do drama do casal, especialmente
na forma como eles procuram se definir em relação ao mundo exterior, a sua satisfação
boêmia que vai ruindo junto com o próprio relacionamento. Nada disso, porém, se
intromete entre o espectador e o filme. Ade tem um olhar clínico e sabe que não
precisa pesar a mão. O filme é por si só transparente demais nas suas ações para
pedir qualquer reforço. A
primeira seqüência nos informa muito sob o que vem a seguir: ela desafia a sobrinha
do namorado a expressar o quanto a odeia, e por fim realiza uma pantomima do seu
próprio assassinato. A criança (habitual figura de autenticidade no cinema) sem
entender nada do que transcorre, a mãe irritadíssima com a cena e o namorado ao
mesmo tempo assustado e satisfeitíssimo com tudo aquilo. Há uma sincronia própria
entre eles que vai aos poucos perdendo o tom. A satisfação com o comportamento
peculiar da namorada aos poucos vai dando mais espaço aos momentos em que ela
simplesmente o coloca em pânico. Quase toda ação transcorre na casa de férias
dos pais dele, que se estabelece logo como um mundo privado com a lógica particular
que o casal lhe impôs. É fácil impor a Todos os Outros uma leitura genérica
– “mais um filme independente de casal em crise” –, o que vai justamente contra
aquilo que o filme tem de melhor que é sua especificidade na forma como ele estabelece
este mundo privado pelo que ele tem de próprio em posturas e gestos. Ao final,
Ade disseca como este mundo privado pode perder a força subitamente, mas a cineasta
também não resiste em sugerir como a mais simples e privada das ações compartilhadas
pode deixar uma porta aberta. Outubro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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